“Um espaço, um homem que ocupa este espaço, outro homem que o observa. Entre ambos a consciência de uma cumplicidade, que os instantes seguintes poderão até atenuar, fazer esquecer, talvez acentuar: o primeiro, sozinho ou acompanhado, mostra um personagem e um comportamento deste personagem numa determinada situação, através de palavras ou gestos, talvez através da imobilidade e do silêncio, enquanto que o outro, sozinho ou acompanhado, sabe que tem diante de si uma reprodução, falsa ou fiel, improvisada ou previamente ensaiada, de acontecimentos que imitam ou reconstituem imagens da fantasia ou da realidade”.
Fernando Peixoto
Certa vez, alguém disse que definir algo é uma das formas mais eficazes de limitá-lo. A afirmação, à primeira vista, pode parecer um tanto quanto radical, é verdade, no entanto, não podemos negar que em alguns aspectos ela além de plausível é um tanto quanto certeira. Se por um lado, compreendemos e entendemos o mundo através do que fizemos dele, e isso passa pelas definições que criamos ao navegar pelos séculos, é inegável também que desenvolvemos através desse tempo a necessidade, e porque não dizer a mania, de catalogar, fragmentar, etiquetar e rotular tudo o quanto fosse possível. Plantas, animais, seres humanos; emoções, medos e transtornos. Tudo e todos estão submetidos às definições, sejam elas científicas, psíquicas ou de qualquer outra ordem.
Na busca pelo conhecimento, correndo através de erros e tentativas, acabamos definindo até mesmo o indefinido. Definimos tudo a respeito de um deus que nunca vimos, catalogamos sentimentos inexplicáveis, afinal, o sentir está além do definir e da razão, e acabamos por definir até o vazio, o desconhecido: o nada. Talvez a definição seja mesmo uma irmã distante da limitação, quem sabe. No entanto, é necessário definirmos algumas questões sempre que nos propomos a algo, por isso, a coluna dessa semana pretende abordar a definição de teatro, não através de nossos olhos, mas através da íris liberta daqueles que não possuem qualquer ligação ou obrigação com essa arte.
A definição de teatro destacada acima é uma das mais famosas, ao menos entre estudantes e profissionais da área, e isso acontece por diversas razões. Em primeiro lugar, é inegável o prestígio e a importância de Fernando Peixoto, autor de tal definição, no “meio cênico” nacional. O “hómi” foi, inclusive, tema dessa coluna há algum tempo. Fernando foi um dos gigantes de nosso palco e talvez seja, ao lado de Sábato Magaldi, um dos nomes mais importantes na área da teoria cênica. Afora isso, é notável a simplicidade e a precisão das palavras de Peixoto. Qualquer pessoa que pretenda ler sua definição sobre teatro é capaz de compreender exatamente o que o autor quer dizer, não é à toa que seu livro O que é teatro? (Editora Brasiliense, 1980) é até hoje uma das principais obras utilizadas em qualquer curso de teatro, das graduações acadêmicas aos cursos livres.
Qualquer pessoa que pretenda ler sua definição sobre teatro é capaz de compreender exatamente o que o autor quer dizer.
Enganam-se aqueles que acreditam ser tarefa fácil a conquista da simplicidade e a pronta compreensão do interlocutor. Não é. Na ânsia de ter voz, muitas vezes acabamos esquecendo que escrevemos para compartilhar idéias, a fim de buscar diálogos que nos permitam exercitar conhecimento e pensamento, e não somente estabelecer o debate, que por definição é a luta pela defesa de uma causa. Defendemos, sim, o debate, a defesa das idéias e as discussões acirradas, essas desde que sejam produtivas, no entanto, percebemos que muitas vezes, e por aqui cometemos esse erro, sabemos disso, ao invés de expormos as idéias acabamos impondo-as, e esquecemos de que escrevemos para chegar ao outro. Por isso é hora de uma espécie de “auto-análise” deste pequeno e combativo espaço. Na busca pelo outro, e com a percepção de que é preciso sempre se reinventar, buscamos na dúvida encontrar a voz que nos falta.
A forma pensada para tanto foi dar voz àqueles que quisessem expor suas idéias sobre as artes cênicas. De bloquinho em mãos, pelas ruas, abordamos em alguns lugares específicos, e muito bem pensados, pessoas ao acaso com uma simples pergunta, sem muita explicação: o que é teatro para você?
Entre as tantas definições possíveis para essa arte, a mentira é também uma delas, afinal, fazer teatro é forjar o mundo à nossa maneira. Se estamos submetidos às leis dos homens e seus caprichos, se estamos condenados a uma existência vazia entre o escritório e a cama, se não nos importamos com o que fazem de nossa vida que míngua diariamente, talvez uma das poucas formas de conseguirmos lidar com isso seja mesmo a mentira. Mentir para nós mesmos, através de outras possibilidades de vivência, tornando-nos personagens, urbanos ou fictícios, e tentando esquecer que talvez tenhamos perdido o bonde dos sonhos enquanto tentávamos nos reconhecer na linha do desespero.
Recomeçar é sempre se jogar em um abismo, é trilhar o desconhecido pelo simples fato de que é preciso se arriscar. Nada de lugar comum! Por isso a definição do que é teatro e a busca por vozes é mais uma tentativa de chegarmos ao outro, de tentarmos criar um diálogo contínuo através desse espaço que precisa de gente e pretende promover o encontro.
No fim das contas, pouco importa o que seja mesmo o teatro. Sabemos que jamais conseguiremos superar a beleza das palavras de Fernando, e a coisa talvez nem se trate disso. Que o teatro seja uma forma artística, um cinema caro ou mentira; nada disso nos interessa. Diante de tantas definições, é preferível ainda se ater a algumas sensações (maldita mania romântica!), e se por um lado, alguns se importam com o que é o próprio teatro, continuamos a acreditar que o que realmente importa é o que ele busca e proporciona, seja a um indivíduo isolado ou a sociedade com um todo.
E já que pensamos o teatro, deixe-nos agora também vivê-lo!