Cada vez mais, é preciso ao homem reaprender a olhar o horizonte. Olhar sempre em frente na busca pelo outro, entregue ao exercício de fugir de seu próprio umbigo. Incólume e disforme diante de si, um novo homem que resista aos seus próprios encantos. É preciso!
Sei que vivemos a era das selfies, das opiniões imediatas, das intimidades compartilhadas e dos amores reféns de logaritmos. Sei que o avanço tecnológico é ilógico e incontrolável, além de rápido. No entanto, tudo isso me soa tão insosso e instantâneo quanto qualquer macarrão de três minutos. Somos os filhos de Narciso diante de um espelho d’água digital, acreditem.
Por conta disso, e por acreditar que revoluções e amores se tramam em conjunto, buscamos nesse humilde, porém honesto, espaço tratar de um teatro que diz respeito ao mundo, e não somente a nós. Com fé em Deus, não morreremos tão cedo, como disse Caetano – e assim espero!
Na maioria das vezes, conseguimos nos afastar de nós mesmos, é verdade. No entanto, existem ocasiões em que é preciso voltar os olhos pra dentro, na busca por respostas que desconhecemos para compreender perguntas até então inexistentes. A coluna dessa semana é isso, e apenas isso: uma tentativa de resposta diante das indagações do tempo.
A coluna dessa semana é isso, e apenas isso: uma tentativa de resposta diante das indagações do tempo.
O tempo, no caso, é um amigo de há tempos. Um homem que andava escondido pelos cantos da cidade, e que numa trombada pela rua trouxe no abraço o peso da saudade, e nos lábios os ventos da tormenta: “Bicho, você ainda acredita mesmo no teatro como quando éramos estudantes? Naquela coisa de mudar tudo através do palco, inclusive o mundo. Acredita?”.
Eu sabia medir o peso de suas palavras. Não era uma mera provocação, não poderia. Era mais do que isso, muito mais! Tempos atrás, estávamos os dois diante da mesma encruzilhada. O resultado? Ele abandonou o curso, ainda no segundo ano, por conta da crença no magistério e no papel político do professor. Eu, sozinho, continuei: cheio de incertezas e sentindo o peso de sua ausência, camarada. Por isso, quando ouvi a voz rasgada do amigo, me colocando contra a parede, eu confesso que tremi nas bases. Tremi, mas lutei! Tentei, em vão, me segurar em algum de meus heróis numa tentativa frustrada de salvação… Nada! Sorri em busca de compaixão, e seus olhos, amigo, permaneciam fixos em minha boca hesitante… Nadica de nada! Vasculhei alguma frase de efeito na estante da razão de meu próprio peito: nada, nada, nada!
Vencido e emputecido, quase perdido, restou-me apenas tremular os lábios num quase imperceptível sim. Sim, e um levantar de sorriso frágil, abaixo do bigode falho, e mais nada. Nada além de dizer ao velho fantasma a falta que sentia de sua voz e de seu abraço. E diante do nada segui, como ainda sigo: como quem anda sem saber ao certo pra onde vai. Sigo por que é preciso ir frente; sigo e, pensando nesse encontro, deito os olhos sobre a tela e as mãos sobre o teclado quando lhe escrevo. E escrevo, hoje, para dizer que, sim, eu ainda credito!
Acredito porque a crença dispensa razões ou motivos. Quando cremos, o fazemos pelo simples fato de que sem fé não se vai adiante. Cremos, e creio nisso, porque sem a crença no futuro acabamos dinamitados por um passado inconstante e estúpido. Creio, querido, e isso basta!
Em resposta ao amigo, e dirigindo-me a todos os companheiros de palco e de martírio, digo que creio por conta da falta de espaço, da possibilidade de amparo e que creio, acima de tudo, porque é preciso defender o cheiro de peixe, e de teatro, que nos toma o sorriso, a alma e os braços. Explico-me:
Reza a lenda que um antigo pescador, desses que trazem a maresia nos olhos e o cansaço nas partes, chegava em casa enjoado e mal-humorado sempre. Indiferente e enojado até o primeiro beijo. Em sua carranca indolente, o homem do mar trazia nos dentes a recusa ao perfume de sua amada. Não desconfiava a pobre coitada, de que o tal cheiro de alecrim, que passava a sua espera, lhe causava náuseas, e que o leite de rosas parecia uma bomba atômica aos seus sentidos viciados.
Todo dia, quando voltava à terra, o canoeiro soltava as feras diante do aroma desconhecido. Desconfiava que a mulher banhava-se em ervas por conta de um amor escondido, e por isso chorava. Chorava por nada, e não sabia disso o pobre diabo. Envolta em desespero, a companheira do mal fadado homem do mar não compreendia que seu nariz, retorcido pela rotina, estranhava tudo o que fosse diferente do azedo cheiro do peixe que dele transbordava. Odiava o moço da rede, tudo e todos que não traziam no peito o aroma do mar e da brisa marítima. Odiava o cheiro de vale e de relva, mas amava aquilo que aos olhos dos outros fedia. Inclusive o cheiro daquela maldita adultera que só em sua cabeça existia.
Por conta disso, fez-se a desconfiança, e sua irmã, a discórdia, encarregou-se do desquite. E foi então que o homem que pelo mar vivia, passou a viver apenas com ele; e perdeu, assim, o amor que além de porto, servia também enquanto guia pra própria vida.
Talvez eu também seja como o pescador, e por conta disso vislumbre no horizonte uma única saída possível: o mundo que existe por trás da cortina. Talvez minha alma, que hoje parece desolada, exale apenas o odor do peixe/palco e isso lhe basta. Talvez eu esteja tão impregnado pela poeira do tablado, que não consiga mais compreender onde termina meu próprio corpo e onde se iniciam os encantos desse estado de espírito que apelidei de homem de teatro; coisa que sempre considerei minha sina.
Sim, camarada, eu ainda acredito! Acredito porque sei que o mundo não da pé, e que sem o encanto que forjei ofício talvez eu também esteja morto, feito um peixe rasgado pela boca na ânsia da fome indivisível de ser um homem perdido no globo. Acredito, sim, por enxergar no horizonte do outro um ser vestido de sonhos, e por convocar, sempre, a todos para um rendez-vous feito de esperança, alegria e destino. Sim, eu ainda acredito, amigo!
Admito que, como muitos, sou um dos filho desse maremoto divino que chamamos vida, e ainda consigo dizer sim quando ela tardia na rotina e se esconde no escuro da coxia travestida de fome. Resta saber até quando. Até quando terei fé no delírio e crença na luta? Até quando secarei as lágrimas com o vento fresco da esperança? Pouco importa! Enquanto puder vou me gabar de acreditar menos no poder e mais no homem. Por hora, e pra lá de onde morrem os sonhos, permanecerei otimista e firme: dizendo sim, sim e SIM! Resta saber até quando…