Dez anos!
Uma década é o tempo necessário para o despertar da paixão em uma manhã de outono, colhendo folhas secas em um beijo morno matinal. Durante cento e vinte meses, escutei da boca seca e sagrada do grande Abu que a vida é, e sempre há de ser, uma causa perdida. Há três mil e seiscentos dias, aproximadamente, eu percorri a vida com a certeza de que o mundo era absolutamente domável. Contei, e ainda conto, horas insones. Derramei lágrimas que regaram, feito a água santa de tua saliva torpe, meus passos tortos pelo destino assombrado de nossos pecados. Os minutos, por vezes renegados, carregavam em si a delicadeza que o tempo breve guarda. E os milhares de segundos, muitas vezes ignorados, me lembravam da fragilidade momentânea que coloria meus dias acinzentados.
Hoje, em Campinas, cidade do maestro Carlos Gomes, acontecia um evento que marcaria pra sempre a vida de alguns jovens. Não se tratava de um furacão, como o Katrina, desses que derrubam casas e demolem vidas. Tratava-se, sim, de uma leve brisa, daquelas que nos adormecem os olhos numa manhã de sol, e fazem a vida valer a pena, mesmo que por alguns segundos, querido Abujamra. Ali, cravado no chão batido da cidade das andorinhas, a Cia Corpo Santo dava seus primeiros passos no teatro local.
Contei por aqui há algum tempo atrás, a história desses guerreiros teatrais que carregam em uma das mãos a certeza de que só a arte pode nos levar a um estado de existência e iluminação, do qual sairemos sempre maiores, e nos olhos o brilho daqueles que, diante de todos os percalços, continuam a lutar pelo que amam. À época, comentei sobre a montagem que o grupo vinha preparando para dar início às comemorações, e prometi aos queridos leitores um olhar sobre a obra. Pois bem, como toda promessa é uma forma de dívida, é preciso que eu, do alto de minha honestidade, a fim de ressaltar minha devoção à palavra solta no ar, dedique a coluna de hoje a este espetáculo tão significativo e precioso.
Em primeiro lugar, é preciso que vos diga que Ofélia Morta é mais do que um espetáculo. A coisa não é um mero teatrinho, daqueles que funcionam como ponte entre o shopping e o restaurante, mas sim um experimento, segundo divulgação da trupe, que faz parte do Projeto Solo. O projeto tem por objetivo “reunir artistas da região para participar de uma residência artística junto a Cia Corpo Santo por 6 meses. Tal residência proporciona aos artistas a oportunidade de entrar em contato com o trabalho de pesquisa teatral utilizado pela companhia na montagem de seus espetáculos”. Desse contato semestral nasceu o espetáculo em questão, que é a conclusão dessa primeira edição do audacioso projeto.
Impossível não lembrar da famosa personagem de Shakespeare, na peça Hamlet, logo de cara.
A princípio, chama-nos a atenção o título, poético e sombrio, do experimento. Impossível não lembrar da famosa personagem de Shakespeare, na peça Hamlet, logo de cara. Segundo o grupo, “O ponta pé inicial para a criação dos solos foi o enfoque na personagem Ofélia, presente na peça Hamlet, de Shakespeare. Diante disso, os residentes puderam vivenciar questões relacionadas à criação própria dessas Ofélias, da ação performática da cena, montagem, dramaturgia, inclusive foram monitorados por integrantes do grupo, que funcionaram como provocadores, incentivando à reflexão, norteando temas decisivos para cada criador, dentre outros aspectos que ajudaram na criação dos solos encaixados a cada proposta em particular”.
Num misto de morte e louura, passeando por indagações sobre os universos femininos e masculinos, somos colocados, impassíveis, diante de um bombardeio de poesia e imagens que invocam fantasmas presos em nossas gargantas. Somos todos Ofélias, perdidos em nossa própria fragilidade. Presos em nossos desconfortos. Arruinados por desejos nunca colocados em prática. Navegamos pelos rios impassíveis, na esperança de, como Rimbaud, nos livrarmos de nossos rebocadores. Adocicamos os lábios com a maçã presa na boca do menino mudo, encharcados por um turbilhão verde que nos assalta a decência e os bons modos. O que nos resta fazer? Mergulhar, como o poeta de olhos azuis, em um poema mar mais forte que a embriaguez e mais vasto que a lira, onde, enfim, fermentarão do amor os amargos martírios. Ofélia Morta, assim como o poema épico do jovem francês, é uma obra viva. O grupo diz que ela surge como uma esperança em alto mar, feito uma miragem divina. Eu, que desaprendi o significado de esperança há muito tempo, só posso dizer que é preciso mergulhar sem medo nesses mares que guardam o delírio na escuridão de seu ventre líquido.
Serviço
Ofélia Morta
Quando: 21 e 22/11, às 18h30;
Onde: Cis Guanabara | Rua Mário Siqueira, 829 – Botafogo – Campinas/SP – Com estacionamento no local.
Entrada franca.
*AVISOS IMPORTANTES:
– Em dias de chuva não haverá apresentação do espetáculo, o trabalho ocorre na área externa do espaço divulgado.
– Para as mulheres: Não é recomendado ir de salto alto, por se tratar de um terreno irregular, com pedras e mato em algumas passagens, podendo causar acidentes indesejáveis.