O espetáculo A Aforista, monólogo de Marcos Damaceno protagonizado por Rosana Stavis, é um convite ao mergulho na loucura inerente aos artistas. O espetáculo é a segunda parte de uma trilogia da Cia Stavis Damaceno, e dá sequência a Árvores Abatidas ou Para Luis Melo, num trabalho que, segundo o diretor, explora as possibilidades artísticas do escritor austríaco Thomas Bernhard, morto em 1989.
De forma semelhante à primeira peça, A Aforista (que fez curta temporada no Teatro Zé Maria, em Curitiba, e deve seguir uma trajetória nacional) mistura drama e comédia para adentrar no universo artístico e às demandas (impostas, imaginadas, sonhadas) a quem é “acometido” pela arte.
Em um cenário sombrio, uma mulher caminha enquanto pensa (embora ela esteja parada o tempo todo ao centro do palco, como uma árvore. Seus braços, inclusive, estão posicionados como se lembrassem galhos). Sua roupa é toda preta, sugerindo luto, enquanto seus cabelos estão inteiramente desgrenhados – de certa forma, mencionando seu estado mental.
Ela recorda de seu passado e de seus dois amigos, Polacovski e John Marcos Martins. Os três são pianistas que se conheceram na faculdade, muito tempo antes. Ao mesmo tempo, ao lado da mulher, no palco, estão dois pianistas (Sérgio Justen e Rodrigo Henrique) que não se olham, mas se revezam tocando trechos que acompanham a tensão crescente na história que é ali contada.
A personagem de Rosana Stavis pontua a genialidade artística com a banalidade dos clichês, ainda assim presentes mesmo nas melhores obras.
Sabemos logo no início que Polacovski está morto. A mulher então entra em seus devaneios – esclarecendo que o espaço que o público pisa é o mental. “Andando vamos resolvendo as confusões e perturbações do pensamento, penso, enquanto ando”, reflete a mulher, enquanto resolve se vai ou não ao enterro do antigo amigo.
Logo vamos entendendo que ela está envolta em suas digressões contaminadas pelo princípio da loucura que define as atividades artísticas (“é para isso que servem os artistas, para dar ao mundo a dose de loucura que o mundo precisa”), embora ninguém saiba bem o que elas são. Dentre estes desvarios, está o sonho de se tornar o maior músico que existe, a sede pela fama e a resiliência para lidar com a frustração de nunca atingir tal objetivo.
A interpretação potente de Rosana Stavis
Tal como ocorria em Árvores Abatidas ou Para Luis Melo, aqui temos mais uma vez um gosto no palco do trabalho magistral de Rosana Stavis, certamente uma das maiores atrizes do teatro no Brasil (ela está indicada ao Prêmio APCA 2023 como Melhor Atriz, e a peça concorre como Melhor Espetáculo). Sua performance é fundamental para conseguir nos arrastar à sensação de insanidade e alucinação que passa na mente de uma mulher apelidada de “aforista” pelos dois amigos pianistas.
O título da peça, inclusive, revela também a intenção de humor do texto de Marcos Damaceno: chama-se aforismos as “frases de calendário”, as sentenças breves que tendem a carregar algum tipo de julgamento moral e que costumam circular e ser facilmente lembradas. A personagem de Stavis, ao ser denominada deste modo pelos amigos, parece pontuar uma possível relação entre a genialidade artística e a banalidade dos clichês – que, ainda assim, estariam presentes mesmo nas obras mais sublimes.
Stavis fala em certo momento da peça: “a gente fala não para comunicar ou informar, mas para tentar dissolver nossas angústias em palavras”. Há aqui uma certa provocação acerca da acessibilidade da arte – que, mesmo que pretenda ser icônica e perene, não perde (ou ao menos não deveria perder) o contato com o seu público.
Ao misturar obviedade e complexidade, sanidade e loucura, humor e desespero (observe o jeito espetacular que choro e riso se misturam na performance de Rosana Stavis), A Aforista está entre os grandes espetáculos teatrais dos últimos anos.
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