O teatro é, por essência, um território de memória. Em Bom Dia, Eternidade, espetáculo apresentado no fim de semana no Teatro da Reitoria, dentro da Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba, essa premissa ganha corpo e voz. O grupo O Bonde constrói uma encenação que não apenas resgata fragmentos do passado, mas os reorganiza em uma estrutura dramatúrgica refinada. Documento e ficção se entrelaçam, enquanto o texto de Jhonny Salaberg propõe uma arqueologia de histórias, trazendo à tona memórias individuais e coletivas que se cruzam no palco. O resultado é uma matéria teatral pulsante e de forte impacto.
O espetáculo encerra a chamada “Trilogia da Morte”, um projeto que investiga a experiência da morte e da finitude sob a perspectiva da população negra. A primeira montagem, Quando Eu Morrer Vou contar Tudo a Deus, abordou a morte a partir do olhar infantil, trazendo uma carga poética e uma abordagem sensorial da perda. O segundo trabalho, Desfazenda – Me Enterrem Fora desse Lugar, aprofundou-se na relação entre território, ancestralidade e desterro.
Em Bom dia, Eternidade, a memória coletiva dos idosos torna-se o centro da cena. A dramaturgia busca reconstituir e reinterpretar vivências passadas através da música, do depoimento e da interação entre realidade e ficção.
A alternância entre esses registros cria dinâmicas de ritmo e intensidade que mantêm o público constantemente envolvido. No entanto, há momentos em que a força evocativa da narração parece se perder quando a encenação recorre a diálogos mais naturalistas.
A trama central acompanha quatro irmãos que, seis décadas após um despejo forçado, recuperam o terreno que pertencia à família. O reencontro com esse espaço perdido se desdobra em um dilema existencial e pragmático: o que fazer com esse pedaço de terra? A questão desencadeia um fluxo de lembranças e reflexões que transcendem a narrativa individual, transformando-se em um comentário sobre pertencimento, direito à cidade e memória comunitária.
No entanto, o espetáculo não se limita a esse enredo principal. Ele se expande em duas direções complementares. A primeira é a incorporação das histórias de vida dos músicos convidados, cujos depoimentos registrados em vídeo são projetados no palco, criando um jogo de espelhamento entre os personagens ficcionais e as trajetórias reais. A segunda é a presença da música ao vivo, conduzida por Fernando Alabê, que não apenas embala a cena, mas se torna um eixo estruturante da dramaturgia.
A encenação de Luiz Fernando Marques, o Lubi, trabalha a montagem como um mosaico em que elementos distintos se interligam organicamente. A cenografia estabelece pontes entre a materialidade do espaço e a intangibilidade da memória. Os relatos pessoais dos músicos adicionam camadas de veracidade ao espetáculo. A interação direta com o público reforça o caráter de teatralidade expandida.
A cena aberta e a espontaneidade dos intérpretes criam um teatro de exposição sincera, no qual a relação palco-plateia se dá por meio de trocas afetivas e simbólicas. Os atores do núcleo fixo do grupo demonstram um domínio técnico preciso, transitando entre a entrega emocional e o distanciamento necessário para narrar os acontecimentos.
A alternância entre esses registros cria dinâmicas de ritmo e intensidade que mantêm o público constantemente envolvido. No entanto, há momentos em que a força evocativa da narração parece se perder quando a encenação recorre a diálogos mais naturalistas. Talvez porque o tom cotidiano das falas não tenha a mesma potência simbólica das passagens narradas, que exploram um universo imagético e poético mais rico. Ainda assim, a montagem se sustenta pela riqueza de camadas e pela precisão com que estrutura o jogo entre memória e representação.
Ao equilibrar sensibilidade e rigor formal, Bom dia, Eternidade reafirma o teatro como dispositivo de resgate e reinvenção da memória. A obra propõe um olhar atento para as histórias de vida que, muitas vezes silenciadas, encontram no palco um espaço legítimo de reconhecimento e permanência.
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