A relação entre crime e sociedade é um terreno instável, onde se entrelaçam questões psicológicas, morais e institucionais. No centro desse labirinto está Adolescência, minissérie da Netflix que mergulha sem concessões nas consequências brutais de um crime violento cometido por um jovem.
Ao longo de quatro episódios, a produção não apenas destrincha os desdobramentos da investigação, mas escancara as camadas de culpa, desespero e negligência que se acumulam entre família, escola e sistema judicial. A narrativa, construída com a intensidade do plano-sequência, não dá espaço para respiro: o espectador é arrastado para dentro dos acontecimentos, forçado a encarar cada momento com desconforto e urgência.
São seis da manhã de um dia comum. Comum, até que uma equipe de policiais fortemente armados, liderada pelo detetive Bascombe (Ashley Walters), invade uma casa e prende um garoto de 13 anos, Jamie Miller (Owen Cooper).
Seus pais, Eddie e Manda (interpretados por Stephen Graham e Christine Tremarco), assistem, paralisados, enquanto o filho é levado à delegacia, processado e trancado em uma cela. Jamie é acusado de assassinar um colega de escola. Ao lado de Eddie, que atua como seu representante legal, e de um advogado, ele precisa encarar as provas acumuladas pela polícia. Em questão de minutos, a rotina pacata da família se transforma em um pesadelo de horror, acusações e revelações brutais.
O início da série é um soco no estômago. Cada episódio é filmado em um único plano-sequência, técnica já dominada por Graham (que cocriou a série com o prolífico roteirista Jack Thorne) e pelo diretor Philip Barantini no filme O Chef (2021).
A abordagem em tempo real é sufocante. A câmera nos mantém reféns da tensão crescente, do instante em que a polícia invade a casa dos Miller até a apresentação da prova fatal contra Jamie, menos de uma hora depois. O caos e a angústia são quase insuportáveis. “Eu odeio casos com menores”, diz uma enfermeira ao avaliar a consciência de Jamie sobre sua situação. “Ninguém gosta”, responde o sargento da delegacia. Mas o trabalho precisa ser feito. O olhar da câmera, inquieto e onipresente, captura cada detalhe da destruição da vida daquele garoto.
A abordagem em tempo real é sufocante. A câmera nos mantém reféns da tensão crescente, do instante em que a polícia invade a casa dos Miller até a apresentação da prova fatal contra Jamie, menos de uma hora depois. O caos e a angústia são quase insuportáveis.
Esse é apenas o primeiro dia. Os outros três episódios percorrem um ano e meio de investigação e julgamento. Bascombe e sua assistente, a detetive Frank (Faye Marsay), vasculham a escola da vítima. Jamie é analisado por uma psicóloga na prisão, Briony Ariston (Erin Doherty). No final, o veredicto chega justamente no dia do aniversário de 50 anos de Eddie.
Nenhum episódio seguinte repete o impacto do primeiro. Em alguns momentos, a insistência no plano-sequência parece mais um obstáculo do que um recurso narrativo eficaz, já que o sistema judicial é lento, burocrático e raramente se desenrola com a urgência dramática de uma hora contínua.
Isso torna a série desigual: o episódio inicial golpeia o espectador sem piedade, enquanto os demais assumem um ritmo mais expositivo e didático. Mas por que destacar o terceiro dia, ou os meses sete e treze? O que essas escolhas acrescentam de essencial à história?
‘Adolescência’ e o mergulho na “machosfera”
Graham e Thorne buscam contextualizar o crime de Jamie dentro de um cenário mais amplo de violência e alienação juvenil. Termos como “incel”, “manosfera” (ou “machosfera”) e “red pill” aparecem sem rodeios (“Bobagem do Andrew Tate”, diz a detetive Frank, com desprezo).
Em casa, os pais de Jamie se afogam na culpa – mas uma culpa que se concentra no próprio filho, e não na vítima. “Ele estava no quarto, não estava?”, lamenta Eddie. “Achávamos que ele estava seguro.”

É uma narrativa incômoda e perturbadora, na qual ninguém sai ileso. A misoginia violenta se alastra nas escolas britânicas. Pais ignoram o que seus filhos fazem na internet. Comportamentos destrutivos são passados adiante como heranças invisíveis. O resultado? Garotos como Jamie. Crianças mortas por facadas em estacionamentos desolados.
A atuação de Cooper como o acusado é magnética, jogando com a empatia do público de forma inquietante. O episódio focado no diálogo entre ele e a psicóloga Ariston é um duelo psicológico que prende e assusta ao mesmo tempo. O elenco inteiro está afiado – e, mais uma vez, Graham se sobressai.
A aposta no plano-sequência adiciona complexidade técnica, mas também limita a narrativa. A investigação escolar parece saída de um procedimento policial qualquer, enquanto a resolução do caso se encaminha deliberadamente para a desesperança. Há um equilíbrio delicado entre provocar reflexão e explorar o sofrimento. Adolescência flerta perigosamente com essa linha.
Ainda assim, negar a força do primeiro episódio seria impossível. É televisão em seu estado mais puro: visceral, sufocante, impossível de desviar o olhar. O fascínio mórbido por crimes extremos se mistura com o desejo de compreender um dilema ético complexo.
O fato de os episódios seguintes não alcançarem o mesmo impacto inicial é tanto uma falha quanto uma prova da grandiosidade do começo. Sempre bem executada, Adolescência mantém uma brutalidade que a torna uma experiência intensa, incômoda e inescapável.
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