Um cenário inóspito, iluminado por uma lua avermelhada, em que um barco arruinado carrega uma linda mulher adornada por penas, como se vestisse uma fantasia do Carnaval. Pode ser a superfície da lua, pode ser um deserto – e pode ser apenas o Brasil. G.A.L.A.(espetáculo criado por Gerald Thomas durante a pandemia, originalmente para ser projetada online) chega ao Festival de Curitiba com o intuito de provocar certa tensão.
“Beckett virou NFT, hoje tudo é bitcoin” são algumas das primeiras falas do monólogo feito pela atriz Fabiana Gugli. Claramente a peça busca desnudar as crises que acometem todo sujeito que hoje habita este planeta, em que todas as referências preestabelecidas estão se tornando bens irrelevantes, descartáveis, ouro de tolo – como as obras de arte virtuais e o dinheiro que não existe.
Vale lembrar que Samuel Beckett é tido como o grande mestre do teatro de Gerald Thomas, e G.A.L.A. marcaria o afastamento da obra dos dois. À Folha de São Paulo, o diretor declarou que “a peça, como outras, é autobiográfica, e é meu rompimento com Beckett. Há 40 anos ele martela e esculpe seu nome no meu cérebro”.
O cenário projetado por Thomas é um ambiente onírico onde sonho e pesadelo se misturam. Bombas e tiros eventualmente soam no local, assim como clássicos da música erudita se misturam com Rolling Stones
O cenário projetado por Thomas é um ambiente onírico onde sonho e pesadelo se misturam. Bombas e tiros eventualmente soam no local, assim como clássicos da música erudita se misturam com Rolling Stones e outras bandas de rock
A Gala do título – uma referência à artista Gala Dalí, artista russa proeminente no século XX e que se casou com Salvador Dalí – transparece no texto que remete a uma mulher que conversa o tempo todo com seu amante perdido, a que chama de Sancho, e diz que sente sua falta, apesar das traições entre ambos.
A ruína do mundo, portanto, é multifacetada: o barco está destruído, a morte está próxima (um dos únicos objetos cênicos presentes no palco é uma caveira), os pilares foram derrubados, tudo que confiávamos esmoreceu.
É difícil saber para onde vamos a partir daqui – e se, tal como crianças mimadas, estamos todos exaustos à toa. “Está pior que as fogueiras da Inquisição? Pior que o Terceiro Reich? Jura? Pior que o crash da Bolsa e a fila da fome, a fila do pão, a fila da sopa de 1929?”, profere a mulher de G.A.L.A. Ela ainda atende o telefone que não para de tocar e responde: “estou em ruínas e você me vem com essa notícia?”.
Ainda que tudo esteja acabado, que sejamos já a sociedade do cansaço, há ainda um tanto de festa, pois a mulher dança e se embriaga (tristemente, vale dizer). Com texto afiado e absolutamente atualizado (que chega a mencionar o tapa dado por Will Smith na cerimônia do Oscar, no último domingo), G.A.L.A. é a estreia “em carne e osso” de uma peça pensada para transmissão virtual. Uma chance e tanto para deleitar-se com o texto de Gerald Thomas e presenciar uma grande performance de Fabiana Gugli.
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