O ator, dramaturgo e diretor teatral Clayton Nascimento, tinha ido ao cinema na movimentada região da Avenida Paulista, em São Paulo. Enquanto aguardava o ônibus em um ponto, na volta para casa, um casal de desconhecidos se aproximou e o acusou de ter assaltado o mercadinho de sua propriedade. Surpreso e perplexo com a acusação, Nascimento negou veementemente ser o responsável pelo crime e pediu ajuda às pessoas ao redor. Infelizmente, ninguém interveio; pelo contrário, se afastaram, enquanto o artista continuava sendo agredido. Ele foi confundido pelo simples motivo de ser um homem negro, aproximadamente da mesma idade e estatura física do suspeito.
O incidente vivenciado por Nascimento, é um revoltante exemplo da rápida disposição das pessoas em rotular e acusar com base em estereótipos raciais. O fato de Nascimento ter sido confundido com um assaltante simplesmente por sua semelhança física com o verdadeiro suspeito ressalta a persistente utilização da cor da pele como critério para julgamentos precipitados e injustos.
Nesse contexto, o premiado espetáculo Macacos, apresentado no teatro Sesc da Esquina, na programação do Festival de Curitiba, emerge como uma obra contundente que desafia as narrativas dominantes da história brasileira. Ao adotar um título que resgata um insulto racial histórico, a peça busca reinterpretar o passado do país a partir de uma perspectiva negra, revelando as vozes silenciadas e as experiências marginalizadas frequentemente ignoradas nas versões tradicionais da história.
A abordagem teatral empregada por Nascimento com quebras da “quarta parede” e uma imersão na realidade nua do racismo estrutural, convida o público a confrontar sua própria complacência diante das injustiças raciais. A energia vibrante e o carisma do artista, que também narra sua história, capturam a atenção da audiência, enquanto ele mergulha nas profundezas das inúmeras tragédias – são muitas, perturbadoras – enfrentadas pelo povo preto, desafiando convenções estéticas para garantir que suas mensagens ressoem com autenticidade e impacto. Por sua atuação, Nascimento venceu os prêmios Shell de melhor ator e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), na mesma categoria.
A abordagem teatral empregada por Nascimento com quebras da “quarta parede” e uma imersão na realidade nua do racismo estrutural, convida o público a confrontar sua própria complacência diante das injustiças raciais.
Entre as tragédias abordadas por Macacos, uma tem centralidade na narrativa da peça: o caso do menino Eduardo de Jesus Ferreira, assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em 2015. Ele tinha apenas 9 para 10 anos, e foi atingido por um tiro na cabeça enquanto brincava na porta de casa, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio. Segundo testemunhas, o disparo foi feito por um PM durante uma operação na região. A morte gerou uma grande comoção e protestos por justiça.
Após a morte de seu filho Eduardo, Terezinha Maria de Jesus, tornou-se uma figura central na luta por justiça e contra a violência policial no Brasil. Ela virou um símbolo de resistência e determinação na busca por responsabilização pelas mortes injustas cometidas pela polícia. Na narrativa de Macacos, ela é mais do que um caso narrado. É personagem central.
‘Macacos’: duração
A duração do espetáculo além do tempo previsto pode refletir tanto a urgência do tema quanto os desafios enfrentados pelo artista ao assumir múltiplos papéis na produção – a peça começou às 20h30 e terminou perto da meia-noite. Valeu cada minuto!
A duração prolongada é justificada pela intensidade e relevância das questões abordadas, evidenciando a necessidade de um diálogo prolongado e reflexivo sobre o racismo no Brasil. O cerne do espetáculo reside na expressão do sofrimento e da resiliência do povo negro, continuamente marginalizado e vitimizado pela sociedade. A tensão palpável presente na obra serve como um lembrete poderoso da urgência de ações concretas e antirracistas em todos os aspectos da vida cotidiana, provocando o público a questionar suas próprias cumplicidades e privilégios.
Ao fim da apresentação, permanece uma sensação de profundo desconforto e inquietação, acompanhada pela inevitável pergunta sobre quando e como a sociedade brasileira finalmente enfrentará as terríveis realidades do racismo e se comprometerá verdadeiramente com a justiça e a igualdade para todos.
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