OFestival Grec, de Barcelona, é um dos mais importantes e renomados festivais de cultura que acontecem no mundo. O evento, que rola anualmente, reúne centenas de artistas e milhares de espectadores em espetáculos de música, teatro, dança e circo, de modo que, durante a sua realização, a maior metrópole do Mar Meditterâneo se dá ao direito de ver e vivenciar obras de grandes escritores, acolher diretores consagrados, descobrir novas promessas da arte e dançar até o amanhecer.
Se por aqui ainda continuamos reféns do vírus, na Europa a situação é um pouco diferente. Alguns eventos começam a ser permitidos, em alguns lugares a obrigação do uso de máscaras vem sendo revista e o público volta, mesmo que timidamente, a frequentar estádios, teatros e casas de espetáculo.
É possível dizer que a volta do público aos teatros, as adaptações às medidas de segurança e o reencontro dos artistas com o palco já fazem da edição de 2021 do Grec um acontecimento histórico, afinal para aqueles que ainda cultivam o apego pelas pequenas belezas da vida a história não é feita apenas de grandes acontecimentos. No entanto, o Grec 2021 pode se gabar de outro momento histórico, acontecido no palco do icônico Teatro Lliure.
Faltavam poucos minutos para o início da sessão no Lliure. Em cartaz a nova produção de Peter Brook: Tempest Project. Aos noventa e seis anos de idade, dono de uma trajetória irretocável e impressionante, o mago inglês é uma espécie de história viva do teatro. Talvez ninguém tenha feito tanto por tanto tempo tão bem, por isso não é necessário dizer que a expectativa em torno de sua estreia, e de sua figura, era enorme.
Peter Brook desperta paixões e temores por onde passa e carrega em suas costas histórias que avoam de boca em boca sobre suas obsessões, seus métodos, suas brigas e amores.
Como todo gênio, Peter Brook desperta paixões e temores por onde passa e carrega em suas costas histórias que avoam de boca em boca sobre suas obsessões, seus métodos, suas brigas e amores.
Todos querem um pedaço do grande gênio, e todos têm uma história para contar com ou sobre ele. Não é preciso dizer que a maioria delas talvez seja pura invenção de gente bem intencionada, o que não lhes tira em nada a beleza e a importância.
Em Tempest Project, Peter Brook retorna a Shakespeare mais uma vez. O autor é uma espécie de talismã, além de ser uma das obsessões do diretor. Em 1955, Brook dirigiu Titus Andronicus, a peça mais sangrenta de William Shakespeare, escrita em parceria com George Peele. Foi o seu primeiro grande sucesso.
O espetáculo o alçou aos grandes nomes do teatro naquele momento. Alguns dizem até que foi o seu maior projeto, aquele que mais representa a caracterização psicológica, marco de sua direção. Por isso, e por ser o seu primeiro trabalho em apresentação desde a pandemia, Tempest Project é um marco na carreira do homem teatro, como tem se falado por aí. E a sua apresentação em Barcelona apenas comprovou o tamanho da obra e a importância de seu criador.
Os atores estão em cena. Os espectadores ansiosos. No fundo do palco algo parece brilhar. Era como se algo metálico refletisse o brilho de uma estrela lá no longe. Uma figura surge e desliza sobre a madeira do tablado, fazendo um pequeno ruído com o atrito da borracha de suas cadeiras de rodas. É Peter brook, aos noventa e seis anos. Dirigindo-se vagarosamente, com o auxílio de Dioniso e de todos os santos e satyros, em direção à boca de cena.
Despido até de sua história, franco, o diretor emociona a todos falando sobre o teatro, a vida, e usando como metáfora personagens, falas e cenas de Shakespeare. As palavras, palavras e palavras de Hamlet que tanto nos ensinam, o amor de Julieta mais forte que a morte que todos sentimos, e a agonia de Otelo apagando a vela antes de matar Desdémona, que deixou todo ser humano na escuridão, e o silêncio definição de tudo.
Quem falava ali não era um homem. A impressão que se tem, e isso dito por quem estava na sala e não quem, como eu, viu apenas o vídeo, é de que o próprio teatro havia se incorporado do corpo imóvel do diretor, e por consequência a própria vida. Aplausos, choros, história.
Talvez a imagem de uma senhor de noventa e seis anos numa cadeira de rodas não seja a melhor imagem para ilustrar a esperança, mas foi justamente esse sentimento que me tomou quando terminei de assistir ao vídeo. Esperança em saber que por mais que se tente, que se faça e se deseje a morte, a vida sempre triunfa no fim. Por mais que se queira calar, proibir e assassinar a cultura, ela também sempre há de vencer.
Peter Brook nos provou naquela noite duas coisas. A primeira é que o teatro voltará, e está voltando. A segunda é que a esperança é uma flor caprichosa que só cresce em peito aberto e só se banha de lágrimas.