No imenso palco do Guairão, abarrotado até a última poltrona, uma profusão de luzes trabalha arduamente para metamorfosear o cenário em uma visão que evoca um mundo em frangalhos, deixando patente que apenas destroços subsistem. E em destaque nesse caos todo, repousa um gigante deitado e atado. Sua semelhança com o homem em pé no palco é notável: estamos diante do grande ator Marco Nanini.
Regressando à colaboração com o diretor após 18 anos, Nanini se entrega de novo ao teatro do absurdo de Gerald Thomas, procurando personificar um monólogo de um homem em estado de demência, dialogando consigo mesmo, com suas memórias e seus espectros internos. Ou será que ele já está morto?
Para aqueles que anseiam por uma narrativa límpida em Traidor, é melhor não prender a respiração. Afinal, “Thomas nunca desaponta”, zombam com ironia espectadores ao deixar uma das sessões mais concorridas do Festival de Curitiba.
O apocalipse não chega apenas com um estrondo, como nos conflitos entre Israel e Palestina, ou na Ucrânia. Para o personagem, se estabelece de maneira mais insidiosa, infiltrando-se em nossa rotina sob a aparência de algo menos ameaçador. “Agora é diferente! Está pior do que nunca! O Instagram é pior do que as fogueiras da Inquisição! O Facebook é pior do que o Terceiro Reich”, dispara o personagem, em um instante que tenta ser impactante, porém soa mais como um desabafo fora de hora, desprovido de contexto. Mas, tudo bem, ele pode estar senil, ou louco.
Repleto de comentários previsíveis e clichês sobre os perigos das redes sociais, Traidor tenta nos imergir em um constante estado de pessimismo, espelhado na forçada solidão do personagem (que também atende pelo nome de Nanini).
Repleto de comentários previsíveis e clichês sobre os perigos das redes sociais, Traidor tenta nos imergir em um constante estado de pessimismo.
Uma diretora ocasionalmente sussurra como uma voz em off , buscando acrescentar uma camada de complexidade que simplesmente não se sustenta em meio a muita pretensão. Ademais, alguns homens surgem no palco como ameaças, simbolizando uma guerra que nunca se concretiza, em um artifício já esgarçado para quem conhece a obra de Thomas.
Em meio a tudo isso, há algum espaço para o humor. Seria uma tentativa de conexão com o público? Mesmo diante do iminente fim do mundo, Nanini ocasionalmente se porta como um rei alucinado, esforçando-se desesperadamente por chamar a atenção. Ele também se entrega a devaneios – como quando se metamorfoseia em uma personagem de comercial, trajado como uma bizarra dona de casa, em referência, talvez, às personagens femininas, ou que se vestem de mulher, já encarnados por Nanini ao longo de sua carreira.
Gerald Thomas, avesso ao realismo e ao naturalismo, tenta reafirmar aqui sua visão do teatro como uma ferramenta do desconforto, algo que mais irrita do que instiga reflexões. Não é um espetáculo para aqueles que buscam respostas fáceis, não. Na verdade, não é um espetáculo para aqueles que buscam algo de fato interessante, consistente. O novo dele já ficou velho. Resta-nos apreciar o excepcional talento de Nanini e um intrigante trabalho de cenografia e iluminação.
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