No teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, um intenso jogo de luzes puxa o foco para um palco que parece retratar um mundo destroçado, no qual só sobraram ruínas. Há um gigante deitado, que está amarrado, remetendo a Viagens de Gulliver. Ele é idêntico ao homem que está no palco: o icônico ator Marco Nanini.
Muitos talvez lembrem de Nanini pelos 14 anos em que ele deu vida a Lineu, o pai de família de A Grande Família, da Globo. Mas, em Traidor, peça de Gerald Thomas, Nanini está longe da figura global que o tornou célebre para o Brasil inteiro. Retomando a parceria com o diretor depois de 18 anos, ele se entrega ao teatro do absurdo de Thomas, para encarnar um monólogo, de um homem que parece esquizofrênico, e que conversa consigo mesmo e seus fantasmas.
Ou seja, não faz muito sentido esperar uma explicação clara sobre do que trata Traidor. Mas é possível pensar que dialoga diretamente com G.A.L.A., peça anterior de Thomas apresentada durante o Festival de Curitiba em 2022. Tal como neste espetáculo, temos novamente um sujeito sozinho emitindo considerações soltas sobre o tempo presente, como se estivesse testemunhando a chegada do fim do mundo.
E o apocalipse chega não apenas de forma óbvia – como, por exemplo, nas consequências da guerra entre Israel e Palestina – mas também naquilo que se adentra no nosso cotidiano travestido de benesse. “Agora é diferente! Está pior que nunca! O Instagram é pior que as fogueiras da Inquisição! O Facebook é pior que o Terceiro Reich”, afirma o personagem no palco.
Repleta de comentários sobre os malefícios das redes sociais, Traidor vai nos trazendo uma sensação de pessimismo permanente, que se reflete na solidão do personagem (que também se chama Nanini). Ainda que esteja sozinho, há outros presentes – literal e metaforicamente.
Repleta de comentários sobre os malefícios das redes sociais, Traidor vai nos trazendo uma sensação de pessimismo permanente, que se reflete na solidão do personagem.
Há uma diretora que eventualmente conversa com ele como uma voz em off (interpretada pela atriz Fabiana Gugli) e há alguns homens que aparecem no palco como ameaças, simbolizando uma guerra que se aproxima, mas que nunca chega. O que resta é sempre o medo.
Mas, no meio de tudo isso, há também o humor. Mesmo prestes a testemunhar o fim do mundo, Nanini se porta por vezes como um rei alucinado, que tudo teve e tudo perdeu. Ele também experiencia devaneios – como quando se transforma em um personagem de um comercial, vestido como uma mistura de dona de cabeça e palhaço, ou quando um rabo de sereia simplesmente ascende ao palco.
Avesso ao realismo e ao naturalismo, Gerald Thomas invoca aqui, mais uma vez, sua visão do teatro como uma ferramenta do incômodo, que mais provoca do que acomoda. Não é um espetáculo para quem espera sair com respostas fáceis. Mas sem dúvida é uma chance imperdível de conferir a potência de um ator como Nanini.
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