[highlight color=”yellow”]Defender o teatro e as artes em sua totalidade e diversidade é como defender a própria vida humana.[/highlight] Batalhas não se travam apenas em zonas de conflito estabelecidas geograficamente, não. Batalhas se travam em diversos campos e diariamente. A existência do homem sobre a terra se deu e se dará eternamente através de embates, sejam eles corpo a corpo, míssel a míssel ou ideia a ideia.
No dia a dia, formamos pequenas resistências, dedicamo-nos a defesa daquilo que acreditamos, e criamos e recriamos a nossa própria realidade através das escolhas que fazemos. Na arte, a coisa é igual e acaba reverberando na própria vida. Ou seria a vida que reverbera no palco? Tanto faz! Vida e a arte caminham juntas, de mãos dadas, uma sempre a transformar e reinventar a outra. Não existe via de mão única quando falamos dessa troca entre vida e obra, artista e homem.
O teatrólogo francês Antonin Artaud escreve em seu livro mais célebre, O Teatro e Seu Duplo, o seguinte: “Acima de tudo precisamos viver e acreditar no que nos faz viver e em que alguma coisa nos faz viver”. A afirmação serve para qualquer ser humano que habita essa terra, mas bate fundo no peito daqueles que entregaram a sua vida ao exercício da arte. Oras, aqueles que desejam viver de obras artísticas precisam ter crença na vida do artista. Evidente que a dureza do existir açoita a todos, e que nenhum artista sofre mais ou menos diante do horror do mundo moderno do que qualquer outro pobre diabo jogado numa esquina do globo em busca de ânimo e respostas para não se atirar da ponte mais próxima.
Sabe-se que o papel de vítima não cabe aos que desejam transformar o mundo, no entanto, talvez seja preciso um exercício sobre-humano para não desistir do palco e abraçar a gravata, por exemplo. O artista é sempre cobrado a tomar uma definição, a ter um “plano b” para sua subsistência e a se conformar com a impossibilidade de viver daquilo que ama e que escolheu enquanto profissão.
Por conta desses e de outros tantos motivos, estamos acostumados a enxergar no artista uma espécie de desvairismo. Uma insistência ora heróica e ora patética de manter-se artista mesmo que isso implique em desafiar a tudo e a todos, inclusive a própria razão. Em um país como o Brasil, onde esses artistas só tem voz e reconhecimento quando alçados ao papel de celebridades ou quando endossados por esse ou aquele crítico, sabemos que a situação é ainda pior. Quando falamos então dos artistas que fazem da rua seu palco, a coisa tende a piorar, se é que isso seja possível.
A esse artistas resta sempre a desconfiança, os olhares tortos e torturantes e muitas vezes até a violência. Não são poucos os casos em que artistas foram violentados de diversas maneiras ao tentar levar seu trabalho à vida cotidiana nas vias da cidade. Atores presos no meio de espetáculos, como no caso da peça Blitz na cidade de Santos, sendo reprimidos e proibidos de continuar seu trabalho seja através da justificativa da ordem, pelos braços violentos e armados da polícia, seja através de uma espécie de “perseguição popular” encabeçada por grupelhos oportunistas e rasos como o MBL que tentam a todo custo criminalizar todo tipo de arte que não faça parte de sua cartilha autoritária e estúpida.
O fato é que diante da crescente onda conservadora que assola o país e da notória falta de discernimento e honestidade daqueles que perseguem artistas com o mesmo entusiasmo que combatem “bandidos”, não era de se duvidar que em pouco tempo teríamos um caso extremo de violência. Esse caso aconteceu no último mês, outubro, quando o bailarino Igor Cavalcante Medina, integrante da Cia Municipal de Dança de Caxias do Sul, teve sua performance confundida com um surto psicótico e, amarrado e dopado, foi feito prisioneiro em um hospital por mais de oito horas mesmo depois de explicar aos policiais e atendentes do SAMU que era um artista exercendo o seu trabalho, inclusive com autorização da prefeitura da cidade.
O artista é sempre cobrado a tomar uma definição, a ter um “plano b” para sua subsistência e a se conformar com a impossibilidade de viver daquilo que ama e que escolheu enquanto profissão.
“Fim: O trabalho aborda a violência e põe o corpo em evidência para trazer à tona as diversas formas de brutalidade do cotidiano, sejam elas físicas ou psicológicas. Os corpos vão sendo envenenados até a total desumanização. Será que já não somos nada mais além de um mero pedaço de carne incapaz de sentir, incapaz de resistir, incapaz de se rebelar?”. Essa é a descrição do trabalho do bailarino Igor constante no material de divulgação do Caxias em Movimento, mostra de dança com duração de uma semana promovido pela gestão municipal.
No site da Secretaria de Cultura de Caxias, o evento é apresentado da seguinte maneira: “O Caxias em Movimento representa aos artistas uma possibilidade para demonstrar seus trabalhos e difundir o seu modo de pensar e fazer dança; uma fonte de intercâmbio entre os envolvidos; e um meio de adquirir conhecimentos e oportunidade de aplicá-los. Ao público em geral, a mostra se faz um importante evento para o contato com este segmento, numa proposta de democratização e descentralização da dança e sua diversidade como forma de expressão”.
Difundir o seu modo de pensar e fazer dança, democratização e descentralização dessa arte ou violência, brutalidade do cotidiano, desumanização? O que se viu em Caxias não foi o planejado pela Prefeitura e sim aquilo que o trabalho da própria vítima denuncia: o horror! O caso, que parece ficção, mas é a vida do artista brasileiro nua e crua, parece estar acima de nossa compreensão, mas vamos tentar explicar rapidamente o que ocorreu: Medina estava no meio de sua performance, que trata sobre tema urgentes como extermínio de pobres no Brasil, quando foi abordado por três policiais e dois socorristas. Indagado sobre um possível surto psicótico, o bailarino explicou que tratava-se de uma apresentação de dança, constante da programação do Caxias em Movimento, e que inclusive possuía uma autorização da Prefeitura para a apresentação em praça pública. Nada!
Policiais e socorristas pareciam determinados a “salvar” aquela pobre alma atormentada que vagava em roupas de baixo pela cidade. Qual o medo? Os temas? O corpo? A arte? Tudo isso! As justificativas do artista, ou do louco, pouco adiantaram. Na falta de um produtor para endossar o que era dito, o bailarino foi dado como maluco, imobilizado, sedado e levado ao “postão”, como dizem os locais. Ali, no posto de pronto-atendimento, o artista que dançava para trazer à tona temas como a violência foi amarrado a uma maca sem ter qualquer possibilidade de defesa e assim ficou durante mais de oito horas, entre o sono e a vigília, dopado por um remédio intravenoso e violentado por todos os poros.
O caso de Caxias do Sul, apesar da extrema força aplicada, não é um caso isolado. São incontáveis os atos de violência praticados contra artistas no Brasil e no mundo afora. Vivemos tempos obscuros onde criadores são perseguidos por todos os motivos. Por aqui, por exemplo, criou-se o hábito de atacar toda arte feita através de leis de incentivo e editais, com a frágil e absurda justificativa de que “não é possível mais gastar dinheiro com artistas na atual situação”. O que essas pessoas esquecem, ou desconhecem, é que [highlight color=”yellow”]a arte é um dos braços mais fortes da cultura e que sem cultura não há civilização.[/highlight]
O ataque às obras, e por consequência aos artistas, é um ataque à própria vida. Não podemos mais admitir que a violência seja maior do que a crença no existir. O artista é um trabalhador do afeto, do desejo, e precisa lidar com a provocação e com os medos do povo. É preciso “avocar” nossos traumas e nossos medos, é preciso tirar o espectador da passividade para que ele possa tomar partido da própria vida.
Há um mundo se desenvolvendo lá fora, onde os pássaros cantam, os carros passam e os artistas são reprimidos e espancados. Há um mundo lá fora feito de violência e covardia pronto a ser reinventado através do amor e da justiça. Precisamos, sim, acreditar num novo sentido para a vida, uma renovação, uma reinvenção através das artes, única via de acesso que conduz o homem à liberdade e ao sonho. Por isso, é preciso insistir, e dizer a todos os cantos que não nos cansaremos de proteger o artista, afinal, como já foi escrito por aqui no início do texto, só assim podemos proteger a própria vida humana.