Sônia encara sua própria face diante do espelho. Ao que parece, o tempo anda batendo à sua porta de maneira violenta, adentrando a sua morada e se apoderando de seu corpo. Aquele brilho próprio, que antes encantava a todos, míngua dia a dia. Ela hoje tem a feição cansada, apesar da esperança que emana de seus olhos cor de relva. Há pouco tempo notou que uma mancha se apoderou do lado esquerdo de seu rosto e avança incansavelmente em direção ao seu maxilar, clareando-se delicadamente até morrer numa pinta da qual ela se envergonhou durante toda a adolescência. Maldita pinta, ela pensa. Talvez seja hoje a única lembrança que me resta da juventude. Essa maldita pinta negra feito piche que reside o limite do pescoço com a funda e ossuda saboneteira. Seu nariz continua o mesmo: alongado e curvilíneo, com a ponta mirando o chão, quase chegando a tocar seus lábios que ainda insistem na vermelhidão do velho batom preferido. Entre eles, uma pequena camada de saliva seca ainda guarda o gosto do último cigarro, fumado ao fim do árduo e desgastante trabalho.
Sônia ainda guarda na testa as gotas de suor da labuta que encerrou no início da madrugada. As pequenas gotículas escorrem pela face de Sônia até darem de encontro com seus olhos, fazendo-os arder feito o fogo que lhe consome diariamente. Ali, entre suas profundas olheiras, as vaidosas bagas pintam-se com o rímel da moça e continuam o resto de seu caminho rabiscando a desiludida fronte de Soninha. Por trás dela, um homem afetado e insolente elogia a performance de a pouco da garota, que veste suas calças. Ela mal o escuta. Acende um cigarro, coloca-o entre os dedos e puxa o vidro de demaquilante de trás do copo da bebida amarga. É o fim da noite de Sônia e ela precisa simplesmente apagar de sua face as marcas de seu ofício. O algodão encharcado parece um elixir que lhe rasga inteira. Assim, sem maquiagem, a moça pode se misturar novamente aos seres comuns e caminhar sem pressa ao pequeno quarto que chama de lar, enquanto pensa no merecido descanso que chega junto ao nascer do sol.
Como Sônia, todos nós nos escondemos por trás de máscaras, independente do material de que são feitas. A cada passo dado, nos vemos obrigados a trocar, de acordo com cada ocasião, aquilo que esconde a nossa verdadeira face. Base, pó, e blush misturam-se às mentiras cotidianas que inventamos diante de algozes e amores para sobreviver em um mundo de aparências. Se é fato que carregamos nos lábios a vergonha de Adão, é também verdade que ela fica absolutamente aceitável quando colorida por um batom enquanto reluz um sorriso. No fim das contas, somos todos personagens e nem sempre encontramos o ator a que procuramos.
No fim das contas, somos todos personagens e nem sempre encontramos o ator a que procuramos.
A maquiagem no teatro é um conjunto de elementos aplicados na pele dos atores e intérpretes, e suas finalidades são as mais diversas, variando entre signos, simbolismos ou a boa e velha opção puramente estética. Uma maquiagem pode ajudar o ator a definir seu personagem, por exemplo, a exagerar um aspecto físico ou algo do tipo. Diferente do que muitos pensam, a maquiagem no teatro não se reduz a um punhado de base jogado na cara dos atores para “segurar o brilho” da face, tampouco é algo simples de se compreender. O maquiador no processo cênico é tão fundamental quanto um cenógrafo e é uma pena que a maioria das produções hoje não consiga contar com um profissional dessa área em todas as apresentações. Geralmente, o maquiador, assim como cenógrafos e figurinistas, é contratado no início do projeto para desenvolver seu trabalho e depois “passá-lo” aos atores que, com ou sem experiência, terão de se virar com pincéis, lápis e esponjas. A maquiagem é a alma de cada personagem e define seu caráter e suas emoções, por isso não é exagero dizer que o maquiador é também uma espécie de alquimista dos palcos.
Já a vida não é própria dos alquimistas. A vida dói e tem pouco encanto, infelizmente. Assim como todo ator, Sônia termina seu dia de algodão em mãos, esperando que aquela pasta mágica nos tire não só a maquiagem, mas que leve consigo também todo o desespero. Sônia termina sua noite apagando o cigarro no cinzeiro. Ela se veste, recebe das mãos daquele homem barbado a sua recompensa em “cash”, como ele diz. Antes de sair, ele limpa os óculos, pigarreia e entrega a ela as alterações para o espetáculo de amanhã. Sônia sorri meio de lado, como quem vê até nesse ato uma tarefa hercúlea. Ela agradece e sai. Sai dali caminhando pelo centro, curvando ruas onde todos bebem e festejam. Ela apenas pensa que dá seu corpo e sua alma a um homem em quem não acredita. Um diretor/cafetão que a explora diariamente. Ao passar pela Rua Augusta, ela se dá conta de que não há consolação àqueles que vivem a vida real, fora das músicas, e que talvez seja tão desgraçada quanto qualquer uma daquelas moças das quais ela desvia na calçada da rua eternizada na canção de Tom Zé. Sônia gargalha, continua sua caminhada com a certeza de que apesar de toda a vergonha, uma hora ou outra é preciso tirar a maquiagem que nos protege, e que ao final de tudo isso, de cara limpa, todo mundo sempre acaba se vendendo por qualquer trocado e que a vida não passa de um eterno negócio.