Vanessa Barbara, escritora e colunista do Estadão, escreveu em 2015 sobre a televisão brasileira e apresentou alguns dados que, segundo ela, são de um estudo de 2011 apoiado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No ano em que a pesquisa foi feita, o percentual de lares com um aparelho de televisão (96,9) era maior do que o percentual de lares com um refrigerador (95,8) e, desses lares, 64% tinham mais de um televisor.
Também em 2015, uma pesquisa realizada pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ), em parceria com o Instituto Ipsos, revelou que para 77% dos brasileiros, a televisão é o momento de lazer mais citado, seguido da ida à igreja, com 24%.
Antes disso, em 2014, a revista The Economist, em uma matéria sobre a Rede Globo, intitulada “Globo domination”, revelou o surpreendente número de 91 milhões de pessoas, pouco menos da metade da população, assistindo, diariamente, ao mesmo canal de televisão. Além disso, a média de horas que um brasileiro passa em frente à televisão, em um dia útil, é de quatro horas e 31 minutos.
Esses poucos dados parecem não dar conta de toda a complexidade das telecomunicações e seus efeitos no país. No entanto, eles nos permitem concluir que o Brasil é um país inegavelmente televisivo – e, ao que se constata, empírica e estatisticamente, um país que consome, em larga medida, um único canal de televisão.
Guilherme Fontes, diretor de Chatô, o rei do Brasil, filme polêmico, entre tantas coisas, pelos 20 anos que separam o início das gravações e a estreia, disse, uma vez, que o jornalista e magnata Assis Chateaubriand “era um controlador que não queria contar a história do Brasil. Queria fazê-la”.
Foi Chateaubriand o responsável pela importação de televisores para a estreia da TV Tupi e foi também o dono da coleção de arte que se tornou o acervo do MASP. No filme, inspirado pelo livro de Fernando Morais, Chatô é um homem excêntrico cujo poder de controle parece total – ele é figura chave para os rumos da política e é um dos nomes que respondem pelo esforço desprendido para que o imaginário brasileiro fosse influenciado, em grande parte, pela televisão (ele surge, disfarçado, na peça No Dia Seguinte).
Desde a sua estreia no pais, na década de 1950, a televisão tem na novela e no telejornal os seus produtos mais consumidos. Estes, nos dão algumas pistas sobre quem somos, fomos ou poderíamos ser. A forma com que nós concebemos o humor, o drama, as relações afetivas e sexuais, as relações de poder, as questões sociais, parecem passar, sempre, de alguma maneira, pela tela de uma televisão.
Sabendo disso, talvez, o grupo Antropofocus apresenta No Dia Seguinte, peça dirigida por Andrei Moscheto (que assina também o texto, junto com Anne Celli) em que o início da televisão é o tema principal.
O espetáculo acontece “nos estúdios da TV Anhanguá, o primeiro canal de televisão do Brasil”, e mostra os bastidores do primeiro dia da televisão por aqui. É um jogo entre os meios de comunicação. É ficção. Vê-se um teatro que explora o universo televisivo que, por sua vez, fez e faz uso do teatro em seu exercício. Um jogo entre palco e tela, os seus conflitos e as suas semelhanças.
Vê-se um teatro que explora o universo televisivo que, por sua vez, fez e faz uso do teatro em seu exercício. Um jogo entre palco e tela, os seus conflitos e as suas semelhanças.
As aproximações entre a teledramaturgia e o teatro, na montagem, são articuladas com a projeção em vídeo daquilo que também acontece no palco. Não se trata de uma simples projeção, no entanto. O que se vê nas telas espalhadas pelo espaço são enquadramentos capazes de tornar televisivo aquilo que, bem ali, na sua frente, é teatro. O recurso de se fazer teatro e televisão ao mesmo tempo é potencializado pela sonoplastia, realizada ao vivo por Candiê Marques e Doriane Conceição, fazendo lembrar a era de ouro do rádio.
É, aliás, nessas relações entre-meios que a peça toca, retratando um período em que ninguém sabia muito bem como fazer essa coisa chamada televisão. O começo disso, que hoje é enorme, foi, curiosamente, “no improviso”. O processo difícil, aqui delineado com contornos humorísticos, é exatamente isso: um processo. A teatralidade surge dos elementos, todos desnudos e manuseados por Lucri Regianni e Paulo Rosa, além, claro, da improvisação, pesquisa da companhia. O que a encenação propõe é um brincadeira com os lugares comuns da teledramaturgia. O dramalhão, os conflitos familiares e classistas, a tríade vilão-mocinha-mocinho, a musicalidade de uma dublagem e o formato do telejornal se tornam material para a criação de cenas cômicas.
Na ficção que o grupo constrói há espaço para as relações com os patrocinadores, os atores e seus modos de operação, as fofocas, o conteúdo, censurado por donos de empresas (ainda que sejam usados eufemismos), os erros e os acertos na produção de um material artístico e tantas outras situações que são facilmente reconhecidas por se tratar de televisão, algo central nas salas e nas concepções de arte e de vida dos brasileiros.
É interessante como a Antropofocus consegue incluir temáticas importantes para o nosso tempo, em diferentes escalas. Os grandes assuntos, como a diferença salarial entre homens e mulheres que, pudera, tivesse ficado no século passado ou, ainda, a dificuldade de se produzir um jornalismo independente, até chegar no que é notícia local, como um crime de trânsito que nunca se resolve porque envolve um político, assim como um governo reconhecidamente violento e truculento que se tornou notícia pela violência policial.
Desse modo, a peça consegue fazer com que a gente ria de nós mesmos, e da nossa curiosa relação afetiva com a televisão. Nós ainda estamos assistindo às mesmas novelas e aos mesmos telejornais, dia após dia. Mas, por sorte, No Dia Seguinte é teatro.
SERVIÇO | No Dia Seguinte
Onde: Cia. dos Palhaços | Al. Princesa Izabel, 465 – São Francisco;
Quando: De 18 de fevereiro a 13 de março. 4ª a sábado, às 20h30, e domingo, às 19h;
Quanto: R$15 e R$7,50 (meia).