A vida do brasileiro, que nunca foi fácil, anda cada vez mais difícil. É tanto desgosto, tanto desespero, que fica quase impossível olhar pro horizonte com o mínimo de esperança. Por obra do acaso, e dessa realidade surreal que assola Pindorama, passamos reto diante do ponto, bailamos na curva, e não nos atentamos ao beijo mais comentado de nossa terra e seu voo transatlântico. Um beijo polêmico, moribundo, dado feito esmola à beira do asfalto. Erro grave, gravíssimo.
Antes de chegar ao ósculo (ó que chique!) é necessário justificar o texto póstumo. A princípio, confesso, a ideia era passar batido pelo fato e então, com o auxílio do tempo, comentar a coisa acontecida. No entanto, algo pediu carona no meio do caminho justificando o troço todo. Algo estava parado na beira da avenida: a turma do teatro.
Ultimamente, pelo bem ou pelo mal, entre discursos inflamados e rupturas inconciliáveis, o papo da turma do teatro gira em torno de um único homem: Nelson Rodrigues. O motivo? O anúncio da adaptação para o cinema, para a televisão e para os palcos da Broadway de uma de suas obras mais interessantes e comentadas: O Beijo no Asfalto.
A JuVee Productions, cujo os sócios são a vencedora do Oscar Viola Davis e seu marido, Julius Tennon, anunciou, em parceria com a Wise Enterteinment, que tem Maurício Rodrigues, neto de Nelson, como sócio, o projeto de adaptar a peça do maior dramaturgo brasileiro para a televisão, para o cinema e os palcos: tudo isso na terra do Tio Sam. A própria atriz anunciou a empreitada em suas redes sociais, espalhando brasa e tremulando os alicerces da atualmente quase uníssona e indiscutivelmente insossa classe teatral brasileira.
A própria atriz anunciou a empreitada em suas redes sociais, espalhando brasa e tremulando os alicerces da atualmente quase uníssona e indiscutivelmente insossa classe teatral brasileira.
Apesar da produção estar engatinhando, em busca de diretores e roteiristas para assumirem as versões audiovisuais do trabalho, o anúncio caiu feito pedra lunar no solo tupiniquim. Alguns defendem que o projeto é absurdo, desagradaria o próprio autor, e está fadado ao fracasso por conta da impossibilidade de transposição da coisa para uma cultura como a norte-americana. Outros acreditam que “o rolê” é histórico, alçará a dramaturgia brazuca a outros patamares e servirá de “menu degustação” para que uma hordas de gringos passe a devorar tudo o que se produz por aqui. Sei lá, sei não.
Se é inegável que, por onde quer que seja montada, a obra monumental de Nelson fará barulho, é também inegável que os caninos ianques tem, por hábito e cretinice, o desejo de abocanhar apenas nossas riquezas naturais e a pouca carne de nossa gente. Triste povo brasileiro.
Pois bem, na maior cara de pau, do alto do muro dos isentões, decidiu-se por aqui, pelo bem de todos, a não entrar em mérito algum da questão, pra não correr o risco de pender prum lado ou proutro, afinal, como nos ensinou Nelson, toda unanimidade é burra. Burríssima.
A única opinião possível, e essa é inconteste, ouvida de ambos os lados, é a seguinte: em meio a tanta vergonha internacional promovida por presidente, prole e ministros, é um afago ao ego nacional, e a todo o povo brasileiro, ver um conterrâneo brilhar por conta de sua obra, magnífica, em solo estrangeiro. Só por isso, e só por hoje, vislumbrando os horrores que só o amanhã do brasileiro esconde, é preciso: obrigado, Nelson. Obrigado por esse descanso na ruína. Arrebenta por lá, irmão, e vinga a vergonha dessa nossa brava gente.