Não houve um só ser na face da terra que não colocou os olhos na imensidão do eclipse lunar que tingiu o céu de carmim, a não ser Robert Lepage. Naquela noite, enquanto todos paravam pra ver o brilho da lua, o ator, roteirista e cineasta canadense começa a viver o início de sua própria escuridão.
Mas para compreender como o antes iluminado Lepage transformou-se nesse homem-escuridão é preciso voltar um cadinho no tempo. Mais precisamente para o dia 26 de Junho de 2018, uma terça. O lugar? O belíssimo Théâtre du Nouveau Monde. A ocasião? O Montreal Jazz Festival, um dos maiores eventos do país. “Lá fora o vento parece até assobiar uma canção de ninar”, diziam. Lá dentro, Lepage estreava, ao lado de Betty Bonifassi, o musical SLĀV: A theatrical odyssey based on slave songs.
Terceiro sinal. Início do espetáculo. Lá dentro, sete mulheres apresentam um espetáculo baseado nos cantos dos escravos norte-americanos. Lá fora, não há mais sinal de assobio. Agora, lá fora existem cartazes, apitos, gritos e palavras de ordem. Existem homens e mulheres, até mesmo crianças. Eles protestam. Lá dentro, das sete cantoras do elenco, cinco são brancas, incluindo a protagonista e parceira de Lepage, Sra. Bonifassi. Lá fora, a maioria é negra e protesta contra o que chamam de apropriação cultural. Lá fora, eles acreditam ter o direito de contar e protagonizar suas próprias histórias, de seus ancestrais e de seu povo. Lá dentro, eles apenas contam. Aplausos. Pano. Pânico.
Não demorou muito para que o grito de revolta ganhasse mais que a frente do suntuoso Théâtre du Nouveau Monde e ecoasse, primeiramente, nas redes sociais e, consequentemente, virasse assunto da imprensa especializada e das rodas de conversa nos botequins canadenses. O fato é que as apresentações correram normalmente nos dias 27 e 28, porém com protestos cada vez maiores. No dia 29, as apresentações foram suspensas e, posteriormente, canceladas.
Segundo a direção do festival, foi impossível não cancelá-las diante do número de mensagens que condenavam a produção. Lepage e Bonifassi ainda passaram um pano: soltaram uma nota no Facebook dizendo que todos, brancos e negros, têm o dever de tocar nos episódios mais obscuros da história e que o espetáculo era, sim, uma forma de fazê-lo. A polêmica perdeu força com o tempo, mas não adormeceu completamente.
Enquanto os atores nativos, respaldados por líderes nativos, exigiam o direito aos papéis que consideravam sua herança, Lepage rebatia dizendo que o grupo de atores envolvido na montagem era absurdamente diverso.
Agora é hora de voltar ao eclipse e à escuridão de Robert. 27 de Julho, sexta-feira. Lepage, ainda absorto no negrume de seu novo destino, acaba de anunciar através de uma nota de sua empresa, a Ex Machina, o cancelamento do espetáculo Kanata. A peça, que conta a história do Canadá através da relação entre brancos e indígenas, tinha estreia prevista para dezembro, no também belíssimo Teatro do Sol, em Paris, e faria turnê por toda a América do Norte, em 2020. Tudo certo, nos conformes, exceto por um único motivo: a falta de nativos no elenco.
Com o anúncio do início da produção surgiu novamente o fantasma da apropriação cultural e, por incrível que pareça, em tão pouco tempo. Sem entender ao certo o que se passava, o pobre Robert se achava o homem mais infeliz do mundo. Enquanto os atores nativos, respaldados por líderes nativos, exigiam o direito aos papéis que consideravam sua herança, Lepage rebatia dizendo que o grupo de atores envolvido na montagem era absurdamente diverso. Tentou de tudo que é meio virar o jogo da polêmica, mas não teve jeito: os investidores calculam riscos e não justificativas. Escaldados pela polêmica anterior, e ainda recente, envolvendo a mesma questão e o mesmo artista, trataram de chispar da história e sumiram levando junto com eles a grana e sonho de estreia na Cidade Luz. A história reascendeu a polêmica. Alguns consideram o episódio uma vitória da representação, outros acreditam que essa “rigidez” limita a arte à autobiografia. Desde então, tem-se a impressão de que em cada canto do globo há alguém palpitando ou opinando sobre o assunto. Polêmicas à parte, a verdade é que a discussão é ampla e só agora começa a ganhar espaço entre público e artistas.
No Brasil, por exemplo, dois casos recentes podem fazer companhia às histórias envolvendo Robert Lepage. Um deles é o convite recebido pela cantora Fabiana Cozza para interpretar a grande dama do samba, Dona Ivone Lara. Fabiana recusou o chamado após uma polêmica envolvendo a falta de visibilidade dada aos negros retintos. A cantora tocou no assunto recentemente e tratou de encerrar a questão em ótima entrevista à jornalista Eliane Brum, publicada no El País.
Outro caso conhecido é o do Sindicato dos Artistas e Técnicos da Bahia (SATED-BA), que no fim do ano passado publicou uma carta aberta na internet contra a escalação dos atores de Segundo Sol, que se passa na cidade de Salvador, e, segundo o órgão, contaria com poucos atores da Bahia, assim como também poucos atores negros. A verdade é que, em ambos os casos, como nos outros dois protagonizados por Lepage, as discussões exigem mais do que verdades absolutas. Reconstruir é uma forma de reinventar, e pra isso basta apenas que seja possível começar, mesmo que devagar, a composição de novas ideias, novas obras e novas concepções de mundo e de arte.
A verdade é que o tempo caminha a seu próprio contento. O que conseguimos até agora foi apenas persegui-lo, e de longe. É impossível prevê-lo, prendê-lo ou detê-lo. O tempo definitivamente não para e aqueles homens, tanto os comuns quanto os extraordinários, que insistem em fechar os olhos aos seus passos, correm o risco de acabarem perdidos na beira da estrada, cobertos de poeira, perdidos no próprio tempo.