Um ano que se inicia guarda em si todas as esperanças do mundo. É impossível não ser tomado pela contagiante possibilidade de mudança. Prometemos, a nós mesmos, aquilo que deixamos de cumprir por toda nossa existência e, de maneira romântica, temos certeza de que nada nos fugirá ao controle nesse novo tempo que desponta no horizonte. Rimos e choramos entre brindes e lembranças, debruçamo-nos sobre um banquete insípido e, ainda assim, lambemos os beiços buscando as últimas gotas de nossa infinita miséria. É claro, a partir de janeiro a vida ganhará novos contornos!
Sim, cremos, e lutamos, com o olhar preso num futuro possível e, por isso mesmo, sorvemos delicadamente o amargor do ano que se encerra a fim de exorcizar os demônios que criamos, ou cultivamos, nos doze meses de desespero que se passaram. Todo fim de ano é, vejam só, uma época de sonhos.
Sim, sonhamos alucinadamente por dias melhores. Desfilamos por devaneios. Escrevemos novas odisseias pelos cantos da alma e, acima de tudo, resistimos. Resistimos sonhando através da esperança, essa fada verde, às vezes engarrafada, que nos estraçalha a realidade e dá sentido a um mundo tão embaçado. Instantâneamente somos capazes de esquecer as mazelas que nos atormentam e, enfim, sorrimos. Sorrimos ansiosamente como se o fizéssemos pela primeira vez. Sorrimos por pura teimosia, como se o simples mover dos lábios fosse capaz de dar um novo sentido a essa vida tão absurda.
Entre o sorrir e o sonhar do fim de ano, reabastecemos o espírito com o ânimo que, erroneamente, julgamos ter. Em breve deixaremos de lado o sonhar para nos dedicar ao somar, e o sorrir, tão cultuado naqueles dias, abre alas para o sofrer sem fim, que é o que ganhamos na busca pelo pão e a paixão de cada dia. Até que um dia, sem demora, o mundo nos devora novamente a razão feito uma ressaca que chega de mansinho e nos impede de seguir em frente. Pois bem, nessa ressaca infinita que insistimos em chamar de vida, acorrentado pela rotina, eu volto à ativa nesse humilde recanto da magia onde o papo, pra variar, é o teatro!
Dois mil e quinze, kiss me baby, foi o ano de estreia desse espaço que, apesar de nunca ter admitido uma relação monogâmica com o que quer que seja, é dedicado às artes cênicas. De início, encontrava-me numa encruzilhada danada: apesar de viver o teatro diariamente parecia-me improvável conseguir levar adiante uma coluna semanal sobre o tema. Aceito o desafio, foi preciso aprender, na marra, a lidar com as questões relacionadas a prazo e temas. Admito aos caros leitores que sou, irremediavelmente, ansioso, o que me causa muitos problemas já que tenho, e hei de melhorar, uma dificuldade tremenda em cumprir os prazos que eu mesmo imponho à minha rotina. Entre crises de ansiedade, cigarros e florais, vou levando, como ensinou o poeta, mesmo com o nó no peito. No fim da encruzilhada, e no início da empreitada, dei de cara com dois xamãs da melhor qualidade: Zé Celso e Antonin Artaud que, sem pestanejar, deram um fim no juízo de Deus e, por consequência, acabaram por findar o pouco juízo que, pasmem, ainda restava na vida deste que vos escreve.
De início, encontrava-me numa encruzilhada danada: apesar de viver o teatro diariamente parecia-me improvável conseguir levar adiante uma coluna semanal sobre o tema.
Escrever sobre teatro, ou qualquer outro tema, é, como já disse por aqui, uma luta diária. A inspiração nem sempre nos toma de assalto e, muitas vezes, é preciso torcer o inconsciente, feito roupa encharcada, na busca de uma saída para cumprir o que foi determinado. Entre a rua e a polêmica da máscara negra, o exercício da escrita foi se aconchegando no lado esquerdo do peito do ator que, com o coração dilacerado, enterrava ídolos no rítmico e intenso dedilhar sobre o teclado. Por aqui descobrimos grupos que andam enterrados no subsolo do mainstream de Pindorama. Vivemos na pele a violência cotidiana e declaramos guerra à razão opressora que nos assombra.
Pode parecer clichê, mas escrever sobre o que se vive é mais difícil do que parece. Aos poucos o escrever sobre teatro passa a influenciar o ator que, em desatino, passa a se enxergar além do palco. A possibilidade de desvendar sua profissão através de um novo olhar é, certeiramente, uma experiência que muda absolutamente tudo em relação ao seu ofício. Que corpo, hoje, sua alma habita? Aquele que se reinventa através da crença na desordem. Nessa pequena trincheira do absurdo, reaprendi a enxergar no teatro a saída para tudo. Essa esperança verde de um novo mundo passa, inevitavelmente, por um palco vazio onde tudo é possível .
O teatro é, imprescindivelmente, o antídoto da lei. Através dele descobrimos que o excesso é o fantástico levado ao extremo, tocando a monstruosidade. Pois estamos juntos, numa cruzada pela monstruosidade desse mundo cheio de plásticas e lipoaspirações na alma. Ergo daqui o copo cheio de lágrimas, inundadas pelo álcool que nos salva, para comemorar um novo ano dessa louca e inconsequente empreitada que é dar vida a um’A Escotilha abençoada.
O desejo desejante de um sonhar e sorrir contagiante permanece. Que o ano que se inicia não nos prive da magia de, inconsequentemente, ter fé nessa vida que tardia.