Habitamos uma terra morta, e por aqui o terror anda dando as cartas. Nossa rainha foi decapitada e sua herdeira, coitada, transformada em desespero. Agora, a pátria não passa de uma dama louca, entupida de ansiolíticos e tristeza, que leva a vida numa ressaca eterna à espera do próximo abuso. É criança solitária, soluçando no canto, amordaçada por notas de dólares e esquecida no fundo de uma gaveta junto às promissórias de nosso espírito. Um país em pedaços, sodomizado pelas hábeis mãos do horror. A morada do breu!
Em tempos onde a escuridão é a única certeza que nos resta, qualquer vestígio de luz já alivia a friagem do peito. As trevas tomaram conta do céu de janeiro, e uma tempestade se apossou do ano inteiro. Brasa no vespeiro! Parecemos descrentes do futuro, incertos do presente e prisioneiros do passado. Procuramos por tudo: uma saída, uma morte indolor, um veneno eficiente ou um mero candeeiro. Afinal, só uma calorosa luminosidade “amarelo ouro” pode de nos salvar das trevas. Um tesouro abrasado, um soalheiro eletrizante. A reluzente companheira de todo morto nacional: a vela. A modesta chama de uma vela que ilumina o homem por trás do pano, na penumbra.
Farsante, louco, gênio, bufão; os adjetivos são infindáveis quando falamos na icônica e inquietante figura desse homem: o escritor, ensaísta, dramaturgo e guru espiritual, ao menos deste que vos escreve, Oswald de Andrade. De pena ácida e vida errante, o antropófago paulistano é um dos maiores responsáveis pelo sopro modernista em nossas letras, além de ter travado debates históricos e hilários com grandes figurões de nossa literatura e se lambuzar em polêmicas tão interessantes quanto sua obra. Impossível negar, e mesmo seus desafetos não ousaram fazê-lo, que Oswald é uma figura de peso em nossa literatura, em todos os sentidos. O homem do Pau Brasil foi sempre combatente e ruidoso, e apesar de ter passado boa parte de sua vida em transatlânticos cruzando os mares para passar longas temporadas na Europa, onde esteve em contato com diversas vanguardas artísticas, o escritor dedicou a sua e a sua vida obra ao Brasil. Afinal, a antropofagia é uma estética selvagem, tupiniquim, própria desses homens que comem homens como nós, descendentes diretos dos devoradores de Sardinha.
O autor de Serafim Ponte Grande foi incansável: fundou e afundou jornais, filiou-se e desligou-se do Partido Comunista, fez troça da elite paulistana. Fez teatro, poesia, fez bonito! Sua obra ainda soa ousada e atual, como sua trajetória e sua figura anárquica, e me parece imprescindível para enfrentarmos esses dias tensos. Como Oswald reagiria à nossa situação política atual? O que pensaria dessa revoltante farsa que se estende entre Mendes, Maias e Calheiros? Impossível saber. Se vivo fosse, Oswald estaria fazendo barulho de alguma forma, isso é certo. Na falta da voz lúcida e da figura impactante do dragão que sempre teve os dentes à mostra, resta-nos o conforto de suas obras que ainda ardem e incendeiam a nossa alma.
Impossível negar, e mesmo seus desafetos não ousaram fazê-lo, que Oswald é uma figura de peso em nossa literatura, em todos os sentidos.
Revista Klaxon, Memórias Sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande, Os Condenados, Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, O Homem e o Cavalo. A lista de obras-primas é extensa! No entanto, de todas elas, uma parece mais urgente. Aquela que alumia toda nossa miséria: aquela da vela. O Rei da Vela, peça teatral escrita por Oswald de Andrade em 1937, comemora nesse ano de 2017 os oitenta anos de sua primeira publicação. Sim, Dona Heloísa de Lesbos já é uma senhora, ainda incorrigível e bruta, que encara o tempo por uma janela partida.
Durante esses oitenta anos, o Brasil passou por diversas tempestades, com a pior delas se formando através de sangue e mordaça naquela república do pau-de-arara. Passamos também por calmarias memoráveis. Poucas, é bem verdade, mas àqueles que vivem no inferno qualquer sopro é vendaval, por isso, guardamos conosco a alegria, inconteste prova dos nove, escondida no empoeirado da lembrança. A história de Abelardo mistura-se à história de nossa pátria perdida, ainda submetida, por exemplo, às obscenas vontades de senhores estrangeiros que atentam contra o nosso povo através da covardia e do mau-caratismo de governantes vira-latas. Os pobres diabos de nossa terra ainda continuam chicoteados pela ganância e protestados pelo simples fato de serem miseráveis em um mundo miserável. Postos na rua, despejados na sarjeta, pela insistência em existir. No final, apesar dos diferentes caminhos, acabamos todos falidos, descrentes e desesperançosos, com um “big end” pago em moeda estrangeira e gargalhadas.
A peça é considerada a obra-prima da dramaturgia oswaldiana e muito disso deve-se à sua ousada concepção. O autor terminou de escrever a obra em 33, no entanto, o lançamento dela só aconteceu em 37, e sua primeira montagem se deu apenas no ano de 1967, através das mãos de José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi e toda a turma do Oficina, num espetáculo tão ousado e histórico quanto a própria obra. A montagem do Teatro Oficina completa, também em 2017, cinqüenta anos de sua estréia. A peça que marcou para sempre a história do grupo, e ainda hoje é considerada por muitos especialistas como uma das mais importantes montagens do teatro contemporâneo, inclusive em publicações internacionais, foi anunciada como a próxima montagem da também cinqüentenária companhia.
A dupla comemoração de O Rei da Vela vem em ótima hora. É imprescindível lembrar Oswald de Andrade, também o genial Zé Celso, e suas idéias nessas épocas em que nos sobram certezas, acusações e palavras de ordem. Somos metralhados pelos dedos que nos apontam aqueles que se julgam os donos das razões, das ideologias e das revoluções. Somos esfaqueados pelo ódio que emana de suspensórios, das gravatas, dos relógios-pontos e do sorriso gelado de um velho político desbotado que arrota antigos preconceitos pra uma horda de desajustados. Oswald, sua obra e sua postura radical que ainda hoje não admitem submissão, seja ela à esquerda ou à direita, são um “vacinão” de luz e gargalhada nas espumantes ofensas que recebemos de todos os lados.
Nesse ano de 2017, leiam O Rei da Vela, montem O Rei da Vela, devorem O Rei da Vela! Enquanto as trêmulas e autoritárias bocas tentam nos catequizar com suas verdades indiscutíveis e suas cartilhas de revolta, sirvo-me de um bom trago, como todo bufão anarquista que tem na liberdade a sua coroa, e continuo firme com o Pai de Pinto Calçudo: o verso no papel sempre valerá mais que as metralhadoras, atirem elas, contra nós, balas ou estupidez. Vida longa ao Rei da Vela!