A Casa do Sol é desses lugares que nos deixam encantados antes mesmo de adentrarmos os seus mistérios. Cravada no gélido útero do cobiçado bairro Parque Xangrilá, na cidade de Campinas, a casa, que hoje abriga o Instituto Hilda Hilst, foi residência da genial escritora durante a maior parte de sua vida. Antes de me debruçar completamente sobre o espaço, é preciso fazer uma pequena pausa e explicar, de maneira absolutamente pessoal, a atmosfera de magia que paira sobre o lugar desde a primeira vez em que estive por lá.
Não consigo precisar exatamente quando pisei pela primeira vez na Casa do Sol. Tenho, e isso não é motivo de orgulho, o gosto pelos excessos da vida, o que causa danos terríveis ao que teimo em chamar de memória, e por esse motivo decidi, há algum tempo, abolir completamente as datas de tudo aquilo que conto, ao menos quando essas datas estão ligadas a acontecimentos que envolvem este que vos escreve. Pois bem, acredito que conheci a Casa do Sol há uns dez anos atrás, pelo menos, e o convite para conhecer o lugar não poderia ter acontecido de maneira mais inesperada. Eu participava à época de um grupo de estudos surrealistas, o Núcleo Surrealista de Campinas, e nós mantínhamos contato com alguns dos nomes mais importantes em relação ao Surrealismo no Brasil, entre eles o poeta e ensaísta Claudio Willer.
Havíamos nos encontrado com o poeta há pouco tempo em sua aldeia, a estonteante São Paulo, para derrubar alguns chopes e levantar muitos sonhos, no Conjunto Nacional. A embriaguez sagrada – salve Rimbaud! – daquela noite ainda pulsava em nosso sangue jovem quando recebemos um carinhoso e-mail de Willer com o pedido: representá-lo, à nossa maneira, em um evento na Casa do Sol. Passado o êxtase, nos demos conta da responsabilidade que vinha implícita no convite e, por alguns instantes, aqueles jovens sonhadores entraram em pânico diante do eminente encontro com a vida e obra da escritora mais porreta de nossas bandas.
Chegado o dia, e que dia, rumamos para lá com toda a esperança do mundo. Dentro do carro, ao som alucinante de Clarice do mestre Caetano, cruzávamos a Campinas-Mogi com fogo nos lábios. Íamos, e isso é fato, para o reduto da burguesia campineira, visitar a alma de uma de nossas mais controversas e guerreiras escritoras. Digo-lhes, com total certeza, que Hilda estava conosco nessa empreitada. Ela estava presente na fumaça do cigarro que inundava o ar. Seus versos copulavam com nossas línguas torpes. Sua vida, tão linda e inspiradora, coloria a estrada que se precipitava diante de nós. Era dela o nosso desassossego. Eram seus os nossos sonhos. Era, e é preciso que vos diga, de Hilda aquela noite por inteira, assim como é, ainda hoje, todos os dias naquela soleira cravada no abismo de todos nós.
Foram horas de papo, de declarações de amor, de certezas destruídas pelos excessos e, principalmente, de festas.
Chegamos! A entrada principal, hoje saudosa lembrança, já nos deixou completamente embasbacados e, quase sem querer, anunciava a beleza daquela madrugada que reluzia diante de nossa íris malcriada. Adentramos sem pestanejar, apesar da inibição, a morada métrica de nossa jornada heroica. Ao chegar fomos prontamente ciceroneados pelo companheiro eterno de Hilda Hilst: o poeta, e quando digo poeta o faço com a boca cheia, Mora Fuentes. Vinho na mão, delírio no olhar, as árvores a acalentar nossa ansiedade diante da grandiosidade do que se via, era, como esperávamos, uma noite histórica. Mora, nosso anfitrião solar, caminhava conosco pelo “bosque” de Hilda, onde a magia transbordava por todos os cantos. Foram horas de papo, de declarações de amor, de certezas destruídas pelos excessos e, principalmente, de festas.
Devorávamos porta-retratos, bebíamos livros e fazíamos amor com o concreto. Aquela noite sublime, surrealista, moldou muito do que este pobre diabo é hoje em dia. Mais não digo sobre o acontecido, até pela crença de que as maiores noites de nossas vidas, são, inevitavelmente, aquelas que dispensam testemunhos póstumos. Foi, e basta que eu vos diga isso, uma noite endossada pelo caos que nos rege. Saí da Casa do Sol com a alma renovada e a certeza de que, independente das circunstâncias, eu havia me tornado um poeta, com a benção de dois gigantes: São Mora e Santa Hilda. E ainda hoje bato cabeça e esses dois orixás particulares.
O tempo, maldito Chronos, afastou-me pouco a pouco daquele lugar encantando. A vida correu, e como corre essa vadia, pelos cantos secos de meus lábios até o retorno inesperado à moradia do delírio e, como todo bom vadio, um dia a gente volta.
Quase uma década depois, retorno aos assombros de Hilda Hilst. Há, graças a Deus, um teatro a todo vapor na velha casa. Dessa vez, trago no sorriso a lembrança de outros tempos e, ao lado, a moça a quem tenho dedicado meus insignificantes dias. O ano é 2016, o início desses doze meses sabáticos, e o tempo, sempre ele, já devastou os sonhos deste que teima em acreditar no amanhã. A entrada principal já não existe mais. Perco-me entre carros de luxo e motos de seguranças, até encontrar a nova entrada do terreiro poético que tanto sentiu minha falta. O portão, uma grade antiga que nunca barrou os sonhos de Hilda, demonstra que ainda somos bem-vindos: entre sem tocar e feche quando passar. Sim, tudo o que acontece por ali nasce e morre com o aval de nossa liberta anfitriã. Da Casa do Sol só se leva a lembrança de um mundo onde a poesia e amor dão as cartas, e isso basta!
Peça Osmo
Osmo nos aguarda com toda a sua estética visceral. Olho para a minha menina. Ela tem os mesmos olhos de encantamento que ostentei uma década antes. Seus cabelos ruivos refletem o por do sol de nossa província, e ela ri. Ri diante da beleza que se molda em nossa face. Ri de nervoso, até porque a figura de Hilda Hilst paira sobre nossos focinhos de vira-latas.
Tomamos uma dose violenta de qualquer coisa, no caso, vinho da melhor qualidade, e aguardamos ansiosos já que os ingressos estavam esgotados. A incerteza nos toma de assalto, até que o destino, vejam vocês, nos coloca diante da certeza: todos assistirão a peça, independente da ordem de chegada! Bebemos com mais tranquilidade mas não tranquilos, já que aquela casa guarda os segredos de abismos não desvendados.
Osmo é sublime! Somos colocados diante da miséria humana que nos assola. Ele está ali, preso em seu útero de acrílico, destilando obsessões e desencantos. A figura de sua mãe atordoa a todos. Somos, sempre, mal resolvidos diante do afeto. Obrigações imprevistas, situações mal digeridas. O vício e o desperdício da vida! Osmo grita e, gritando, nos deixa mudos diante da vida. Sua pulsão erótica nos mantém vivos enquanto somos interrogados por sua autodestrutiva trajetória. A peça tem pouco mais de uma hora, mas o peso de sua apreciação dura, aproximadamente, um século.
Sua pulsão erótica nos mantém vivos enquanto somos interrogados por sua autodestrutiva trajetória.
Campinas, essa terra de ninguém, carece de mágicos espaços, onde a alma perde sua mordaça e os sonhos são realizados. Espaços de esperança e fé, onde a arte nos possibilita essa vida que temos tanto procurado. Uma vida viva, vadia, que nos impressiona com suas possibilidades de fantasia e magia. Há vida na província Campinas. Ela resiste na luta diária de Daniel e Olga que fazem da Casa do Sol um recanto de Dioniso. Resiste na memória de Hilda e Mora que insistem em, como este que vos escreve, acreditar nessa coisa que chamam vida.
Espaços por aí existem milhares, basta ter olhos de ver. No entanto, e isso é mais um fato, só há um lugar, deveras sagrado, onde é possível viver o teatro que queima em agonia. Sim, esse lugar é a Casa do Sol e, por mais que se diga o contrário, é naquelas correntes de ferro e malícia que resiste o futuro do teatro de Campinas. Em defesa de Sémele e de todas as vadias da terra, eu, um pobre lacaio da rotina, afirmo: se só há teatro onde há poesia, a Casa do Sol é a maior casa de espetáculos, e de paixões, que existe na terra. Salve-nos, pois, do conformismo, querida Hilda!
“Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta.
Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta”
Hilda Hilst