“Hélio Eichbauer não cria apenas um ambiente, mas funciona como órgão vivo, que projeta, ilustra e até contradiz a ação dramática”.
Sábato Magaldi
O crítico Sábato Magaldi foi, e sem sombra de dúvidas ainda é, o grande teatrólogo brasileiro. Através de seus artigos e livros tomamos contato direto com o teatro. Mais do que conhecer, sua obra nos permite vivenciar tudo aquilo que toca. Em 1972, no saudoso Jornal da Tarde, o JT, o jornalista publica o artigo “Hélio Eichbauer, o cenário como linguagem exata”. Em análise brilhante, Sábato prenuncia aquilo que o Brasil, e o mundo, conheceriam anos mais tarde: a genialidade de Hélio Eichbauer.
À época, o artista já era conhecido por seu trabalho em relação à cenografia cênica, já havia trabalhado com mais de uma dezena de figuras importantes do mundo do teatro e da dança e carregava o “título” de reinventor da cenografia tupiniquim pela trabalho primoroso na histórica montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, junto ao Teatro Oficina. O homem não era, e nunca foi, pouca coisa.
Em 1972, Hélio já era gigante. No entanto, era um gênio reconhecido em meios específicos, por pessoas ligadas a atividades específicas. Diferentemente dos atores e diretores, idolatrados e cultuados feito verdadeiros santos, os artistas e trabalhadores cênicos que não ultrapassam o limite da cortina permanecem ocultos, esquecidos no breu da coxia. De certa forma, era assim com Hélio, por isso a declaração no artigo do JT soa como premonitória mesmo diante da certeza do talento de Eichbauer.
Se quando da sua morte, no último dia 20, José Celso Martinez Corrêa o comparou a Picasso, Caetano o homenageou em um show na Itália e diversos artistas mundo afora o consideraram um dos maiores que já existiram, muito se deve ao seu talento e à sua dedicação, mais um pouquinho se deve à postura de Sábato Magaldi, que sempre lutou em defesa dos gênios que atuam por trás da cena.
Nascido no Rio de Janeiro, no ano de 1941, Hélio Eichbauer rebentou para vida em meio às batalhas da Segunda Guerra Mundial. Enquanto a Alemanha nazista investia contra a União Soviética, o futuro artista se dedicava à vida comum: na infância, brincadeiras e descobertas. Na juventude, estudos, paqueras e, também, novas descobertas. Vida que segue, no toque que se dá. Até que então, um dia, a arte começa a falar, a tocar a vida. Em 1962, aos 21 anos, Hélio Eichbauer muda-se para Praga, na República Tcheca, à época ainda Tchecoslováquia. Lá, estuda cenografia e e arquitetura cênica sob orientação de Josef Svoboda, considerado o maior profissional do mundo nos anos 70.
Por lá, também, aprende não só os segredos de sua profissão, como também vivencia a obsessão conduzida pela paixão no processo criador. Eichbauer fica ao lado de Svoboda até o ano de 1966, quando resolve cruzar fronteiras europeias em busca de novos conhecimentos. É nessa época que estagia no Berliner Ensemble e na Ópera de Berlim, na antiga Alemanha Oriental. Depois, passa rapidamente por França e Itália até se fixar em Cuba, onde trabalha no Teatro Studio Havana ao lado do ator e diretor Vicente Revuelta, considerado um dos criadores da vanguarda teatral cubana.
Em 1972, Hélio já era gigante. No entanto, era um gênio reconhecido em meios específicos, por pessoas ligadas a atividades específicas.
Depois do período na terra de Fidel Castro, Hélio volta ao Brasil. Trabalha na montagem de As Troianas com direção de Paulo Afonso Grisolli, no Rio de Janeiro, e então desenvolve o cenário e os figurinos para a peça O Rei da Vela, na enigmática montagem do Teatro Oficina. Pelo trabalho o cenógrafo ganhou os prêmios Governo do Estado de São Paulo e Associação Paulista de Críticos Teatrais.
A cenografia da peça muda a cada ato e une de maneira livre o Expressionismo, o Realismo e o Teatro de Revista, propondo metáforas junto ao texto. A livre-interpretação, ou devoração como preferiria Oswald, faz com que o cenógrafo tenha um papel autoral na concepção do espetáculo, algo absolutamente novo para o teatro brasileiro da época. O telão pintado com a Baía de Guanabara, a “bocarra banguela de Lévi-Strauss”, é até hoje reproduzido em muros, grafites, zines e publicações mundo afora. Além de servir de cenário para a peça, a pintura, inspirada em Tarsila e Lasar Segall, foi capa do disco Estrangeiro, de Caetano Veloso.
Depois de O Rei da Vela, Hélio passa a trabalhar de maneira obsessiva, sempre em busca de novas técnicas e desafios, construindo e dinamitando sistematicamente obras e processos criativos. Como os grandes artistas de seu tempo, e de tempos remotos, produz de maneira de incansável. Nesse período, trabalha com absolutamente todos os grandes nomes do teatro brasileiro. De autores e textos consagrados a grupos e artistas renomados. São centenas de nomes, dezenas de espetáculos e dúzias de prêmios em diversos países percorridos.
Participa de montagens de Oscar Wilde, Nelson Rodrigues, Sófocles, Strindberg, Maiakovski, Machado de Assis e tantos outros. Faz história ao lado de diretores consagrados como Ziembinski, Martim Gonçalves, Luiz Celso Martinez Corrêa, João das Neves e Fernando Torres. Além do teatro, o incansável artista se aventura em outras artes. Participou do Cinema Novo ao lado de Glauber Rocha no filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, reencontrou Oswald de Andrade no belíssimo O homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade, além de trabalhar em Kuarup, de Ruy Guerra, Gabriela, de Bruno Barreto, e Tudo Bem, de Arnaldo Jabor.
Também participou de shows de Chico Buarque e Caetano Veloso, além de trabalhar como professor na Escola de Belas Artes da UFRJ, na Escola de Teatro Martins Pena e tantas outras instituições. Hélio trabalhou de maneira sistemática e incansavelmente, mas o trabalho de professor o possibilitou, além de ensinar, documentar e repassar às futuras gerações seu legado como artista. Se há em Hélio a fúria do criador que leva o trabalho até as últimas consequências, há também a generosidade do professor que sabe que é preciso passar adiante não só o conhecimento como também o bastão.
Hélio Eichbauer foi um artista inquieto, movido pela paixão. Um artista movido e guiado pelo coração, que escolheu a construção de uma obra sólida, de ruptura, em detrimento da fama e da grana. O coração vez ou outra palpita. Afrouxa no apito da existência, silencia. Hélio continua pulsando, talvez mais do que nunca. O legado de sua obra sobrevive à ruptura do músculo da vida e ecoa por aí, como o órgão vivo que sempre foi, que sempre será. De toda a obra sua obra, talvez o mais tocante seja uma frase simples, solta em uma entrevista para Lídia Kosovski para a Revista Chronos.
Quando perguntado sobre o que teria a dizer aos novos cenógrafos, estudantes que estão começando a carreira, Hélio, do alto de sua genialidade, além de estudo e dedicação aconselha a coragem. Coragem, sim, para seguir adiante mesmo com a escuridão apontando no horizonte. Coragem para saber que é preciso tocar o barco mesmo diante de borrascas, mesmo diante de ondas intransponíveis. Coragem, acima de tudo, para suportar e, como disse Eichbauer, “seguir vivendo e acreditando na vida”.
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