A Concatedral de São Pedro dos Clérigos, popularmente conhecida como Igreja de Pedro dos Clérigos, é um templo católico localizado no Bairro de São José, centro do Recife. A igreja e seu pátio são considerados um dos conjuntos arquitetônicos e urbanísticos mais expressivos da cultura barroca em Pernambuco, além de estarem localizados num dos lugares mais privilegiados do carnaval da cidade, afinal, logo ali, colado à São Pedro, está a sede do maravilhoso Galo da Madrugada, o maior bloco de carnaval do mundo.
Construída nas primeiras décadas do século XVIII, a igreja é dos lugares mais icônicos do velho Recife. Por aquelas bandas, a história cultural da cidade foi escrita desde os primórdios. Naquela rua, por exemplo, passaram as procissões e manifestações da cultura negra no final do século XIX. Além de tudo isso, como se fosse preciso mais, foi ali, debaixo da belíssima pintura ilusionista feita por João de Deus Sepúlveda, que o escritor e gênio pernambucano Ariano Suassuna apresentou ao Recife, que sempre foi sua forma de chegar ao mundo, aquela que talvez seja a sua “grande obra”: o Movimento Armorial.
Idealizado por Ariano, o Movimento Armorial tem como base a criação de uma arte erudita brasileira baseada no popular. Para os integrantes do movimento, a cultura popular sofria uma desvalorização à época por ser sempre vista através da ótica do folclore. A percepção não era nenhuma novidade. Gilberto Freyre, também no Recife, e Mario de Andrade, em São Paulo, tinham visão e trabalhos anteriores que seguiam nessa direção, de modo que, além de servirem de base para os princípios armoriais, há quem diga que o movimento liderado por Suassuna é uma espécie de continuação natural do trabalho de ambos, mas, evidentemente, com suas particularidades e seu próprio entendimento de cultura e de mundo.
O termo que batiza o movimento vem do universo da heráldica, ciência que cataloga brasões de armas e famílias, e acompanha o tom medieval que está presente em toda obra de Ariano Suassuna.
O termo que batiza o movimento vem do universo da heráldica, ciência que cataloga brasões de armas e famílias, e acompanha o tom medieval que está presente em toda obra de Ariano Suassuna. Apesar de lançar o movimento somente no ano de 1970, como um curso do departamento de extensão cultural da Universidade de Pernambuco, do qual era diretor à época, o próprio escritor disse diversas vezes que começou a elaborar a ideia muitos anos antes, na década de 40.
O Brasil precisa olhar para si mesmo
Aldir Blanc, que nos deixou meses atrás vitimado por esse maldito vírus, cantou lindamente em “Querelas do Brasil” que “o Brazil não conhece o Brasil”. A obra-prima composta por Blanc em parceria com o também genial Maurício Tapajós foi gravada por Elis Regina em 1978 e é usada até hoje para ilustrar como o Brazil oficial, submisso e colonizado, desconhece o Brasil profundo, o verdadeiro Brasil.
Depois da constatação, Blanc ataca com artilharia poética pesada: jabuti, ururau, porecramecrã, piá-carioca. É uma rajada de Brasil na cara do Brazil. Um primor. Pois bem, oito anos antes de Elis gravar “Querelas do Brasil”, Ariano Suassuna, debaixo da obra de Sepúlvada, discursava algo parecido dizendo que era preciso que o Brasil olhasse para si mesmo a fim de se redescobrir, e que a única forma disso acontecer era através da valorização daquilo que o mestre definia como popular. Suassuna falava de embolada, de galope à beira-mar, de cordel, xilogravura, de cantadores do sertão, do caboclinho e de tantas outras belezas que alguns insistem em diminuir e desprezar. À sua maneira, Suassuna já sabia que só o povo pode libertar o Brasil das garras do Brazil.
Além do famoso discurso de Ariano, que foi registrado pelo Diário de Pernambuco na edição de 20 de Outubro do mesmo ano, o evento teve apresentação do concerto “3 séculos de Música Nordestina: do barroco ao armorial” com regência de Clóvis Pereira e execução da Orquestra Armorial da Câmara, além de uma exposição com obras de diversos artistas nordestinos.
É possível que nenhum dos participantes e entusiastas do movimento, entre eles o próprio idealizador, tinham ideia de que aquela noite impactaria profundamente toda a arte brasileira feita nos anos seguintes. No entanto, é impossível negar a influência que o MA causa ainda hoje e os herdeiros diretos do movimento, que transcendeu os limites do nordeste e ganhou o mundo.
O legado
Talvez a grande beleza do Movimento Armorial esteja naquele realismo mágico do sertão que ele carrega. Talvez a poesia toda da coisa esteja mesmo naquele ambiente cheio de figuras míticas, histórias pitorescas, causos incontáveis e toda aquela sabedoria que parece florescer no meio de uma terra seca, mas absolutamente fértil e potente. Talvez seja isso mesmo, deve ser, mas hoje é impossível dizer que só isso defina completamente a arte armorial.
Exemplos não faltam: existem grafiteiros por aí que, inspirados pelo movimento, escalam prédios madrugada a dentro para deixar sua marca em estilo de xilogravura pelo velho centro do Recife, ou o grupo de teatro e canções carioquíssimo que se intitula Armorial e canta a cultura nordestina em ritmo de funk, ou ainda Antônio Nóbrega com sua rabeca cantando São Paulo em alguma unidade do Sesc. Tudo isso é atual, fala a seu próprio tempo, é claro, mas vem de lá: daquela noite na Igreja de São Pedro dos Clérigos, Outubro de 1970.
Que o Movimento Armorial é de extrema importância para a cultura brasileira, principalmente a produzida no Nordeste, todos sabemos. Que depois daquela noite tudo mudou, literatura, cinema, arquitetura, teatro, dança, música, artes plásticas; tudo(!!!), também sabemos. O que não se sabe é se as comemorações do Movimento Armorial deveriam ter caído justamente nesse ano tão doído, nessa tragédia travestida de calendário que está sendo 2020.
Em tempos tão difíceis como esse que atravessamos, é comum pegar bronca, criar raiva, ficar puto. Pense bem: vivemos diante de um vírus que se alimenta de vida e, como se não bastasse, estamos reféns de um governo genocida, negacionista e perverso. Assim, olhando de perto, sentindo na pele, fica claro que não está nada fácil ser brasileiro. Sem perceber, ora por vergonha, ora por hábito, acabamos pouco a pouco perdendo a empatia com o país, com a nossa própria terra por achar que ela é um mero espelho da escória que a governa. Isso é natural, infelizmente.
Agora, tão natural é também o exercício de lutar contra isso, e de ter olhos de ver e ouvidos de ouvir aquilo que importa, que inflama o peito, que nos faz levantar. Creio que hoje, 50 anos depois daquele discurso de Ariano, a sensação que tenho é a de que ao ler suas peças teatrais, ao ouvir as músicas do Quinteto Armorial, ao apreciar uma gravura de J. Borges resgatamos aquela sensação que julgávamos perdida e que muitos tentam matar em nós todos os dias sem sucesso: o orgulho da nossa arte, dos nossos artistas e orgulho dessa brava gente brasileira que na base do suor e das lágrimas constrói diariamente o que temos de melhor: a cultura popular.