A Avenida Andrade Neves, em Campinas, é uma dessas vias quase sem pátria ou localização. Um amontoado de asfalto e prédios, de casebres e comércios, que apesar de ser a cara do Botafogo, “povoado” que ela atravessa feito lança ao ligar a antiga Estação Ferroviária ao bairro do Castelo, poderia estar localizada em qualquer parte do globo.
Toda cidade, dos pequenos distritos às grandes metrópoles, possui em seu ventre, seja ele de terra ou de piche, uma rua como aquela. O “boulevar” botafoguense foi batizado em homenagem ao primeiro e único barão do triunfo, o militar brasileiro Joaquim de Andrade Neves, destemido General e comandante da famosa divisão “caballeria loca de cuenta”, como os denominaram os soldados inimigos. Joaquim foi, em vida, um dos maiores expoentes brasileiro na Guerra do Paraguai, e por conta disso recebeu, após a sua morte, diversas homenagens. Uma delas foi a grande alameda na cidade do maestro Carlos Gomes.
A avenida é larga e extensa na maior parte de seu percurso, com algumas pequenas mudanças em suas faixas e mãos, frutos de uma espécie de adaptação natural construída e reinventada através dos anos por conta das incontáveis modificações espaciais em seu tronco urbano. Tão grande quanto sua silhueta sinuosa é a diversidade de pessoas, edificações e “comércios” à beira da Andrade Neves.
Por se tratar de um ponto de passagem importante, abrigar as estações ferroviária e rodoviária, além da delegacia mais importante da cidade, o lugar é habitado por todo o tipo de figura: pastores, meretrizes, vagabundos, bêbados, malandros, advogados, mendigos, senhoras cheirando a alecrim, bancários, policiais, casqueiros e artistas. Todo tipo de gente pisa aquela terra de ninguém no vai-e-vem diário de ônibus e carros. Homens e mulheres que se atropelam solitariamente numa marcha triste e cabisbaixa pelos calçadões de paralelepípedos que ali desaguam. Além disso, é possível encontrar de tudo a toda hora às margens da Andrade: Igrejas, ópticas, hotéis caindo aos pedaços, padarias, inferninhos dos mais variados tipos, despachantes, escritórios contábeis, bocas de fumo, pensões, oficinas mecânicas e botequins. [highlight color=”yellow”]A Andrade Neves é uma selva urbana repleta de personagens anônimos que tropeçam por suas guias diariamente.[/highlight]
Um desses personagens, talvez o mais colorido deles, é o palhaço Espoleta. Um palhaço esquisito, com um nome batido e uma roupa surrada, que vende livros de colorir pelos semáforos. Debaixo do dourado e ardente sol campineiro, o bufão faz ponto quase diariamente. “Às vezes, prefiro não gastar o dinheiro do ônibus como nos dias de chuva”, afirma Espoleta em um dos faróis da Andrade Neves, fazendo palhaçadas e contando piadas para conquistar seus “clientes”, muitas delas tão desgastadas quanto a tintura de sua chuteira laranja.
De livros em punho, Espoleta vai de janela em janela, de carro em carro, em busca do pão de cada dia. A maquiagem é simples: batom vermelho na boca, pasta de palhaço branca em toda a face. O olho esquerdo tem um contorno que começa com uma reta abaixo da bochecha, seguindo a linha do nariz, e faz um arco com o lápis preto que abraça completamente a lateral do rosto do palhaço. O espaço é todo preenchido de azul. O outro olho, o direito, tem o mesmo desenho, no entanto a cor escolhida para o preenchimento foi a laranja, a mesma cor dos sapatos improvisados.
Espoleta, que hoje em dia adora cores, diz que durante muito tempo foi um palhaço em branco e preto. Em Jarinu, sua cidade natal, no interior do estado, a coisa era feia. Além da lona do peito rasgada pela impossibilidade de ser artista (“era preciso trabalhar desde cedo naquela época, não tinha moleza como hoje”), a única coisa que o garoto tinha para se maquiar era uma pequena rolha com a ponta queimada. Hoje, o colorido personagem da avenida sorri em forma de arco-íris e parece uma obra de Jackson Pollock, que criou vida e perambula por aí.
O nariz, marca registrada de todo palhaço, é de espuma e de estimação, por isso é possível perceber os retoques feito com esmalte pelo próprio Espoleta. “Apesar de mais quente, a espuma incomoda menos e interfere menos na voz, fica menos anasalada do que com o plástico”, diz enquanto ajeita a peruca tão rala quanto o cabelo natural do homem por trás da máscara.
O nariz, marca registrada de todo palhaço, é de espuma e de estimação, por isso é possível perceber os retoques feito com esmalte pelo próprio Espoleta.
A rotina do palhaço Espoleta começa cedo, diferente de muitos colegas de picadeiro que tem vida noturna, e é das mais simples possíveis. Todo dia o homem se levanta, escova os dentes e prepara o seu café: preto com bastante açúcar, acompanhado de um pão na chapa, preparado no fogão de duas bocas que toma uma parte significativa do pequeno quarto em que mora na cidade de Hortolândia. O quarto faz parte de um terreno ocupado por uma antiga casa, uma espécie de pensão, no bairro Amanda II. Depois do café, o homem começa a sua transformação: veste as calças brancas com grandes círculos verdes, a camisa amarela e vermelha, se maquia e veste as meias listradas. Por fim, antes de sair, o agora palhaço calça a chuteira alaranjada e pega sua mercadoria: livros para colorir que ganha de um amigo dono de banca. “Os que não vendem depois de um tempo ele me dá para trabalhar, sem custo nenhum, na base da amizade mesmo”.
O caminho até o ponto de ônibus é razoavelmente curto, dura cerca de 10 minutos, e o artista de rua usa esse tempo para preparar a sua apresentação diária. Repassa na cabeça algumas piadas, dá uma boa olhada nos livros que trás na bolsa à tira colo e confere seus instrumentos de trabalho: uma buzina de bicicleta daquelas bem irritantes, um óculos gigantesco desses que distribuem em formaturas e festas de casamentos, uma matraca meia manca e meia surda que insiste em seu “matraquear” apesar da pouca força e pirulitos “para as crianças que adoram o Espoleta”.
O fluxo de pessoas que vão da cidade de Hortolândia para Campinas todos os dias é enorme, portanto a frota é grande e o palhaço não precisa aguardar muito tempo no ponto, o que não impede o homem pintado de ali mesmo, à espera da lotação, começar as suas vendas e seu show itinerante. Segundo Espoleta, os pontos de ônibus são bons lugares para se vender os livros, afinal “ali as pessoas não têm janelas para se fecharem e não podem sair correndo, porque se fizerem isso perdem a condução”.
A viagem é rápida e o ônibus, geralmente lotado, corta a pista em direção à avenida onde o palhaço bate o ponto. Depois de aproximadamente 20 minutos, o artista puxa a cordinha, dando sinal ao motorista, e desce na rua, evitando o terminal de ônibus próximo à rua Dr. Ricardo, uma espécie de cracolândia campineira que nunca fecha, como a matriz paulistana. Assim que desce do veículo, Espoleta se transforma: apertando sua buzina e distribuindo pirulitos às crianças, ele segue em direção ao cruzamento da Avenida Benjamim Constant com a Andrade Neves onde deixa seu estoque de livros e uma bolsa com algumas bugigangas aos cuidados dos meninos que “trabalham em frente ao grupo”.
O grupo em questão é o Colégio Estadual Orozimbo Maia, cravado no encontro das avenidas, e os meninos são homens feitos, de barba por fazer e camisetas de times diversos que trabalham no lugar vendendo água, chocolates Suflair ou limpando vidros de carros. Assim que avistam o palhaço, os pobres “meninos” gritam em sua direção, gargalham e não se diferenciam em nada das crianças que avistamos nas filas do circo estacionado atualmente no Parque Taquaral, em outro canto da cidade. A única diferença aparente entre eles e os pimpolhos do Parque é a barriga vazia dos meninos do grupo, que não têm o cheiro de pipoca em suas mãos e sim o violento odor da cachaça conquistada a duras penas.
Em troca da recepção calorosa, recebem alguns pirulitos e ouvem algumas piadas, muitas delas pela centésima vez. Depois do rito diário, os garotos voltam aos seus rodos encharcados de detergentes e Espoleta segue seu caminho, procurando uma esquina “sem dono”, que o pedaço é concorrido e “o pessoal não aceita concorrência e chegam até a trocaram socos” por conta de um espaço apertado entre a fumaça dos automóveis e a negativa dos motoristas sufocados pelo trânsito.
Espoleta tem os músculos flácidos, caídos, laceados por uma vida sem sem glamour ou piedade, contornado pela insistência e colorido por um amor à arte quase incompreensível.
De aí em diante, a rotina é sempre a mesma, com uma ou outra supresa no decorrer do dia. Varia. Vidros fechados na cara, sorrisos, piadas empoeiradas e o trabalho incessante da matraca que apesar da força é silenciada pelo burburinho da cidade. Se arrastando feito um pagador de promessas descrente, afundando o corpo em um mar de gente e veículos, o palhaço Espoleta segue sua peregrinação diária em tom de riso forçado. Diferente dos palhaços que brilham nos palcos, muitos deles atualmente diplomados e atléticos, Espoleta tem os músculos flácidos, caídos, laceados por uma vida sem sem glamour ou piedade, contornado pela insistência e colorido por um amor à arte quase incompreensível.
[highlight color=”yellow”]Não, a peregrinação do palhaço invisível não é uma questão monetária e talvez por isso mesmo seja difícil para nós compreender sua sina de palhaço de rua.[/highlight] Diz que sofre preconceito dos outros artistas de rua que o consideram um velho louco que passa os dias em busca de um passado que deixou escapar pelos dedos calejados pelo trabalho de pedreiro que exerceu a vida toda. O homem por trás da máscara não precisa do dinheiro dos livros, pelo contrário, é aposentado e recebe um pouco que pra ele é muito. “Levo uma vida simples, nunca fui acostumado com luxo e ganho o suficiente para continuar vivendo”.
A causa de sua peregrinação é outra. Os livros, e as vendas desses livros, são a desculpa perfeita para o senhor sair de casa diariamente vestindo a fantasia que carrega no peito desde a infância, quando aguardava ansiosamente a chegada dos circos na cidade e entrava sorrateiramente no terreno para ouvir, do lado de fora da lona, as peripécias dos “homens que vestem alegria”. Não é preciso dizer que Espoleta é um desses homens.
Um homem fora do comum, que à primeira vista assusta com sua maquiagem esculpida pelas gotas de suor e rastros coloridos pelo pescoço. Um palhaço de ruas e avenidas, um personagem esquecido pela massa que passa apressada em direção ao nada desesperadamente. Espoleta é, diferente do que pensam alguns artistas esterilizados de gabinete, um dos maiores palhaços do mundo. Um palhaço real que abraçou a fantasia e as cores para escapar da realidade dura e cinzenta de todo brasileiro. Ali, no seu picadeiro de asfalto, o homem de face pintada é o rei de uma gargalhada seca, nervosa como o trânsito de automóveis e pedestres que o sonhador por trás da máscara insiste em chamar de público fiel.
Com a chegada do pôr-do-sol, o cansaço se achega e o riso aos poucos dá lugar ao desânimo. A volta é dura, um pouco mais do que ida. Ônibus lotado, filas e caminhadas. Antes porém a estrela do Botafogo arruma tempo para, ainda vestido, dividir uma cerveja com este que vos escreve. No papo de balcão, lança a pergunta enigmática: “sabe qual o quadro mais famoso e antigo do mundo?”. De bate pronto e de maneira lógica qualquer um responderia sem titubear que era a famosa obra de outro gênio, Leonardo Da Vinci, a Monalisa, só para o papo não desandar. Mas como Espoleta faz juz ao nome, o autor dessas linhas preferiu ouvir da boca do própria artista a resposta e, por conta disso, deu a negativa. “O quadro mais famoso e antigo do mundo é um quadro que minha mãe tinha em casa, e que se via muito por aí. Um palhaço triste, de olhar perdido, que se a gente procurar direito ainda deve encontrar em algum chinês”.
Depois disso, Espoleta deita o último gole de sua cerveja e segue seu caminho. Some no cruzamento das avenidas, depois de pegar seus pertences com os meninos. Ali, subindo a rua de maneira solitária, é possível perceber que aquele palhaço também é uma pintura, tão antiga quanto o quadro de sua mãe, talvez ainda mais velha. O seu sorriso emoldurado pela avenida que transformou em palco é a pintura mais antiga do mundo e retrata, de maneira única, a luta de um artista que, apesar dos traços grosseiros e do desgaste promovido pelo tempo, está exposto na galeria anônima da cidade de Campinas.
A luta do palhaço Espoleta é combustível para todo artista que, como aquele gigante, acredita no riso em detrimento da dor diária. A nós resta pouco, quase nada. Apenas um obrigado escorrendo pela boca cerrada e uma violenta salva de palmas eterna para palhaço mais engraçado e solitário do entorno!
Clap! Clap! Clap!