Maria das Dores e Maria dos Prazeres são irmãs gêmeas, mulheres pretas, que sempre viveram na favela e compartilham um legado de dor e exclusão. Filhas de um homem que passou boa parte da vida no Centro de Detenção do Carandiru, em São Paulo, não conseguem, por mais que elas tentem, quebrar o ciclo da marginalidade: o filho da primeira, Gabriel, acaba de ser preso e o marido da segunda, um homem violento e abusivo, está encarcerado há anos.
As duas personagens, protagonistas da peça Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos, apresentada no Festival de Curitiba, são exemplares de uma sociedade desde sempre pautada pelo preconceito racial, pelo desequilíbrio social e, sobretudo, pela violência. De temperamentos muito diferentes, como seus nomes deixam entrever, elas unem esforços na tentativa de salvar Gabriel, vítima das circunstâncias e preso injustamente, mas um sistema secular, que as condena à imobilidade, torna seus esforços inócuos.
Resultado de um processo de pesquisa teatral desenvolvido ao longo de um ano pela Companhia de Teatro Heliópolis, batizada em homenagem ao bairro periférico de São Paulo, Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos, dirigida por Miguel Rocha, chegou a Curitiba credenciado pelo Prêmio Shell, que lhe concedeu dois troféus, nas categorias de melhor dramaturgia (de Dione Carlos ) e música (a direção musical é de Renato Navarro), mais do que merecidos. É um dos destaques da Mostra Lúcia Camargo (principal) do Festival de Curitiba, dentro da qual o espetáculo, que teve sua primeira apresentação nesta segunda-feira no Teatro da Reitoria. Foi ovacionado.
Por mais de duas horas, Cárcere nos imerge nesse entre-mundos, tão próximos para alguns e distantes para outros tantos.
Tributo á resiliência e às dores das mulheres pretas brasileiras – mães, filhas, esposas, irmãs, tias –, a peça se passa em dois territórios que parecem destinados, historicamente, à população negra do país: a favela e a prisão. Na primeira, onde tentam se fortalecer como comunidade, protegendo suas famílias, estão sempre suscetíveis a uma ordem social e política excludentes, à espreita. A cadeia é destino quase inevitável para seus pais, maridos e filhos, quando não para elas mesmas.
Enquanto vemos as duas Marias, a das Dores (Jucimara Canteiro) com o seu martírio de mãe, e a dos Prazeres (Dalma Régia), em sua luta por não perder a alegria de viver, somos lançados, como espectadores/cúmplices na penitenciária e suas engrenagens, que aos poucos vão moendo Gabriel, jovem sensível que sonha se tornar artista. Das Dores preconiza que precisa tirar o filho de lá, senão ele não resistirá. Ela, afinal, conhece esse inferno bastante de perto, assim como a irmã.
Há também na montagem um plano mítico, sustentado pela religiosidade de matriz africana, pela música ritualística e pela força dos Orixás e sua potência identitária, que as transformam, sobretudo Maria dos Prazeres, em mulheres búfalos, cuja imponência dos cornos simboliza luta e resistência, herdadas dos ancestrais escravizados.
Por mais de duas horas, Cárcere nos imerge nesse entre-mundos, tão próximo para alguns e distante para outros tantos. O resultado é uma experiência teatral, estética, ao mesmo tempo dolorosa e memorável. O Brasil nos esbofeteia sem piedade em um espetáculo tão urgente quanto necessário.
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