Nos últimos dias, escrevi por aqui a respeito da peleja envolvendo o diretor de teatro Roberto Alvim e o Sesc. À época, mergulhado nas águas claras e traiçoeiras da esperança, deixe-me levar pela correnteza do “deixa disso” e tratei o caso com a devida isenção. De lá pra cá, tudo mudou. A correnteza virou procela, o barro se achegou aos poucos de uma hora pra outra e turvou o líquido espesso do caldo teatral paulistano; e ouso dizer brasileiro.
Relembrando: Roberto Alvim veio a público reclamar, denunciar, esticar o dedo contra o Sesc. A acusação era gravíssima: censura. A justificativa, fundada não em fatos mas no famoso “disse que me disse”, sempre soou um tanto frágil, afinal, o estardalhaço em redes sociais busca mais apoio do que solução, como todos sabemos. O apoio veio. O chororô de Alvim rendeu e rendeu muito, ao menos para o cabra. Hoje, enquanto arrebento o teclado com o cigarro repousado no cinzeiro, o “injustiçado” fundador do Club Noir dorme com o couro descansado no cargo de diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte depois de receber, como o próprio revelou em redes sociais, uma ligação do presidente Jair Bolsonaro. A coroação para a nomeação veio de um velho conhecido de todos nós: Osmar Terra.
Uma coroa feita de mágoas
Osmar Terra é um desses políticos empoeirados que vivem de usurpar a nação que fingem defender. Atual Ministro da Cidadania, o médico de fala mansa, conhecido por sua luta brutal e ignóbil contra a política de drogas e pelas irregularidades que cometeu ao pagar com dinheiro público as despesas de seu escritório em Santa Rosa (RS), foi quem entregou a Alvim a sua coroa repleta de flores mortas.
Além de Terra, a nomeação de Roberto Alvim foi apoiada por Regina Duarte e Carlos Vereza, dois atores globais notoriamente conhecidos pelo apoio irrestrito, e muitas vezes imoral, às pautas de extrema-direita. O pobre diretor injustiçado está, vejam só, muito bem acompanhado. Com sua coroa feita de mágoas e a história manchada pelo apoio cego e irrestrito a uma trupe política digna de nojo, Roberto Alvim inflou o peito, cerrou os punhos e, como aqueles que hoje o defendem, aumentou o tom e diminuiu a massa cinzenta que carrega na cuca.
Logo que se acocorou no cargo, o teatrólogo de extrema-direita, como é conhecido hoje em dia, declarou uma “guerra cultural” e convocou artistas que estejam alinhados à sua estupidez para fazer fileira no front. Por isso, e por ter sangue ao invés de mingau correndo nas veias, é preciso que essa coluna tome uma posição diante do anuncio. E de cara, senhores, eu vos digo: nunca estarei ao lado da tropa de choque, dos torturadores, dos milicianos e dessa gente que tenta nos calar na base da porrada. Em suma: nunca estarei ao lado de Roberto Alvim e de seus senhores.
A cultura, esse tesouro feito de lutas
Nós, artistas, vivemos do ouro. Um ouro incompreensível, quase inexistente, que por aqui, Pindorama em chamas, parece uma crença no absurdo. Um ouro feito de sangue e de luta, um ouro fundido na pele bruta do artista que insiste em encontrar no horizonte uma razão que o mova. Àqueles que garimpam esse tesouro profano, não existem limites que os faça retroceder. Roberto Alvim sabe bem o que é isso. O carioca radicado em São Paulo trilhou os caminhos da cultura, sacudiu no vagão do desprezo e mendigou diante do supermercado do establishment, e, apesar de tudo isso, rompeu a fronteira do bom senso em direção ao autoritarismo e a insensatez.
Não decreto o fim de Roberto Alvim por aqui, e espero nunca o fazer, mas decreto que, até que a poeira baixe, e o mundo gire, está decretado publicamente o nosso divórcio artístico.
Hoje, seu “filósofo” preferido é um velhote movido a nicotina e preconceitos que, como ele, se alimenta de mentiras e mágoas. Hoje, o artista, vencido pela canseira, anda de braços dados e sorriso largo ao lado de um homem que defende o fechamento de museus, a perseguição de opositores e o assassinato de inimigos. Hoje, aquele homem que um dia deve ter carregado em si todos os sonhos do mundo, é a mão armada e inquisidora de uma cultura que se abastece de lágrimas e ódio, e se gaba de fazer parte de um desgoverno que carrega no lombo, com orgulho, os fantasmas de todos os torturadores e uma mala cheia de pó no avião da FAB.
Não decreto o fim de Roberto Alvim por aqui, e espero nunca o fazer, mas decreto que, até que a poeira baixe, e o mundo gire, está decretado publicamente o nosso divórcio artístico. Creio que o homem deve continuar trabalhando, e que os espaços devem continuar o recebendo; no entanto, sempre tive no peito a prática anarquista do deboche e da ação direta, de modo que, crente da minha pequenez, posso simplesmente fazer o óbvio: me recusar a prestigiá-lo onde quer que ele esteja.
Boicote não é censura
O chororô de Roberto Alvim não é justificável. Um homem que toma partido do horror sabe muito bem o que defende e, principalmente, quem combate. Vir aos jornais reclamar da falta de alunos em suas oficinas ou do público em suas encenações não é plausível quando o mesmo chorão chama José Celso Martinez Corrêa publicamente de câncer e acusa Chico Buarque de canalhice. O diretor, que tem em seu currículo uma obra e uma história respeitáveis, sabe que ao descer das tamancas corremos o risco de levar tamancadas na cara. Sempre foi assim e sempre será, ao menos por aqui: Pindorama em chamas.
Não defendo a censura como fazem os novos amigos de Alvim, como não defendo o ódio. No entanto, e escrevo isso com o espírito livre e o corpo leve, sei bem como devemos tratar os fascistas e seus simpatizantes. Não existe argumento diante da violência, existe a certeza do rumo da liberdade e sua defesa inegociável. Em nome da musa de Rimbaud, não devemos nos censurar em cerrar os punhos, sair à luta e brigar contra quem for preciso. Que Alvim saiba disso, e que entenda que negar a sua guinada ao horror não é capricho ou vaidade, e sim sacerdócio daqueles que defendem toda a beleza do mundo.
Que o Brasil está condenado a ser um país acorrentado ao passado, não há dúvidas. Há tempos, e a coisa piorou muito nos últimos meses, estamos perdidos, ajoelhados, aguardando o milagre que nunca chega. Somos uma nação perdida, e esse descaminho reverbera por todos os cantos, assola todos os pobres e nos encarcera mesmo que estejamos livres. Combater aqueles que nos pretendem mortos ou calados é a nossa sina, e estamos, pois, crentes de que a vida vale isso quando a causa não é perdida. Roberto Alvim, entenda: você e sua trupe estão condenados à insônia por conta do barulho de nossas paixões. Bom sono.