Na última semana, o teatro brasileiro, principalmente o produzido na capital paulista, desfilou pelas redes sociais dividido, cortado ao meio numa janela pública em razão de um quiproquó dos diabos. A peleja é das boas. Briga de cachorro grande, como se diz cá no interior. De um lado Roberto Alvim: dramaturgo, diretor e professor, um dos mais interessantes e talentosos nomes do atual teatro brasileiro e responsável por espetáculos deslumbrantes que colecionam elogios e impressionam por onde passam. Do outra lado o Sesc, com suas unidades que servem de descanso, ou de oásis, à doideira dessas cidades grandes, mal pensadas, mal geridas e inóspitas. Treta, treta, treta.
O troço começou há cerca de duas semanas, quando Alvim fez um post em sua página no Facebook acusando o Sesc de censurar seu novo espetáculo, Aurora, que estrearia na unidade Vila Mariana no dia 26 de Julho. Segundo o dramaturgo, a instituição cancelou a apresentação em um “e-mail seco” depois que um funcionário do Sesc comentou, também em rede social, sua decepção com o diretor por conta de suas opções e ideias políticas, no que foi procurado por Roberto, segundo o mesmo, para esclarecer as tais “mentiras”, como ele diz em seu post.
O Sesc negou. Disse que o cancelamento foi necessário nesse momento e que uma nova data seria agendada. À primeira vista, o imbróglio parece simples, apesar da acusação gravíssima, não fosse por uma coisa: está afundado no irrequieto e movediço ventre da política nacional. Para compreender melhor tudo isso, antes de voltar ao caso, é preciso dar uma olhada rápida para o Brasil e a tempestade eterna que paira sobre nossas cabeças.
Há tempos, habitamos uma terra despedaçada. Não é de hoje que estamos estraçalhados feito um espelho partido por um murro seco. O Brasil de hoje não passa de um “trincheirão” aberto que dá pro nada, metáfora perfeita do que nos tornamos enquanto nação. Somos o inexplicável, o inacreditável; a mudez inevitável diante do assombro. Um sonho brutalmente interrompido. Por aqui, nos últimos anos, aprendemos a escancarar as vísceras e esconder a cara. Ruidosos e histéricos, substituímos a razão individual por um delírio coletivo que nos balança num mar de intolerância e desespero. Ser brasileiro nunca foi mole, mas piorou muito nos últimos tempos.
A causa dessa doença que devora a alma nacional é política, ou aquilo que entendemos por política. Aliás, melhor dizendo, nossa própria deformação do que é o jogo político. Somos a nação que não cansa de repetir que “política e religião não se discutem” e acabamos por deixar a política nos engolir. Sim, a política vive de devorar pessoas. Por todos os lados para onde olhamos há exageros, equívocos, desinformações e falta de entendimento e interesse.
Se é impossível levar a sério essa tal politização súbita e desordenada, quase assustadora, que inundou de selfies e coreografias as ruas do Brasil, é também inegável que há tempos não falávamos, pensávamos e discutíamos tanto política como atualmente. A questão é: pelo caminho errado também é possível chegar no Paraíso? Sempre acreditei que sim, por isso ainda insisto em tocar rumo nesse eterno tropeçar tupiniquim, vagaroso e contínuo, regulado pela gota que incomoda e atrasa a passada em direção ao país do futuro.
Pois bem, enquanto ainda somos o país do passado, cada vez mais atrasados e ridicularizados no mapa-múndi, é preciso voltar à treta de filas do teatro brasileiro. O caso é que Roberto Alvim, além de acusar o Sesc de censura, disse em sua página que a causa do cancelamento de sua peça é uma espécie de represália por conta de seu apoio ao governo de Jair Bolsonaro e sua admiração declarada por Olavo de Carvalho, a quem chamou de filósofo.
É importante lembrar nesse momento que Bolsonaro, através de um decreto, ensaiou uma facada no famoso “Sistema S”, que fez com que representantes do Sesi e do Sesc, com o aval de grande parcela da população, fossem a público criticar o capitão e avaliassem uma briga judicial com o cabra. Portanto, que Jair Bolsonaro e Sesc estão em lados opostos não é difícil de compreender, mas isso significa que a instituição tem o direito de boicotar, ou censurar, esse ou aquele artista? Não, até porque a censura é, vejam só, própria daqueles que Roberto Alvim defende, e não o oposto.
Portanto, que Jair Bolsonaro e Sesc estão em lados opostos não é difícil de compreender, mas isso significa que a instituição tem o direito de boicotar, ou censurar, esse ou aquele artista? Não.
Além do evidente despreparo, das ideias criminosas e das inegáveis ligações com a milícia, há um outro aspecto que chama atenção na história do presidente Jair Bolsonaro: o culto em volta de sua figura. É esse culto cego, próprio das adorações, que faz com que homossexuais defendam esse político inegavelmente homofóbico, que faz com que mulheres compareçam às passeatas em defesa desse homem assumidamente machista e com que artistas, como Roberto Alvim, tomem a defesa do homem que declarou guerra aos artistas.
Sim, Roberto peleja do lado errado, ao menos na minha opinião, e acaba por colocar sua cabeça diante do caminho da bala, o que não significa que não tenha o direito de fazê-lo. A nós resta assistir a isso, meio sem compreender ou acreditar, torcendo para que a coisa se anuncie futuramente como uma performance ou algo do tipo. Fazer o quê?
A grande discussão, no fim das contas, é: o pensamento político de um artista está dissociado de sua obra? Muitos acreditam que sim, outros tantos acreditam que não, como mostraram as redes sociais nos diversos comentários sobre o caso. A verdade inegável, e na qual sempre me apeguei, é que somos o resultado do que criamos, pensamos, defendemos e acreditamos. Somos homens e mulheres feitos de carne, mas também somos feito de sonhos e de verdades.
João Guimarães Rosa disse que a vida espera da gente coragem. É certo. Sem coragem é impossível tocar o barco, mesmo diante das maiores adversidades, das piores decepções e das mais absurdas escolhas. Tocar em frente sem cultivar heróis ou fabricar mitos, reconhecendo que todos, sejam artistas ou políticos, são humanos, passíveis de erros, movidos por gostos ou interesses, sempre dispostos a guerrear por algo, mesmo nem seja do lado errado. Se mesmo a causa mais nobre encontrará seus inimigos, quem somos nós, pobres diabos, para querer agradar a todos?
Uma coisa é fato: a censura, vinda do lado que for, é inaceitável. Como também é inaceitável o apoio a torturadores e exaltadores dos crimes cometidos pela ditadura verde-oliva que ainda sangra no peito do país. O episódio precisa ser esclarecido, o espetáculo precisa ser apresentado ao público e os artistas, ah, os artistas, deveriam voltar a ser mais independentes de mitos, ídolos, ideias pré-fabricadas e heróis. Os artistas, com suas mil faces heróicas, deveriam ser mais independentes e rebeldes nesses tempo tão sombrios.