O teatro, arte antiquíssima, se transformou através dos tempos não apenas em questões estética e tecnológica, mas também enquanto entretenimento. Dos “terreiros” de Tebas às grandes salas pomposas onde a burguesia desfilava, do alto da lona de um circo perdido no meio do nada num meio século qualquer a essa São Paulo cosmopolita com espetáculos até de madrugada, muita coisa mudou. A única coisa que manteve-se inalterável, que sempre fez parte do trato, que esteve sempre aí atravessando os séculos junto à arte foi a famosa “ida ao teatro”. Sim, deslocar-se, sair de casa, colar no pico; para se assistir a uma peça de teatro é preciso ir até o espaço, ir de encontro aos atores. Não é? É! Quer dizer, será? Sei não. Mas era. Isso, era! Era mesmo, era isso, isso até outro dia, até a revolução do streaming.
No inglês, streaming significa algo como riacho, córrego. No mundo cibernético, streaming é uma tecnologia que envia informações multimídia através da transferência de dados. A grosso modo, é uma transmissão instantânea de dados, por isso o nome remete a essa coisa de água corrente, de fluxo. O mecanismo foi inventado já há algum tempo, na década de 1990, mas só se popularizou nos últimos anos por conta do aumento de velocidade das conexões web. As baixas velocidades das décadas anteriores não permitiam o carregamento instantâneo, de modo que o mecanismo ficou na “geladeira” todo esse tempo até alcançar o estrelato definitivo através do Netflix.
A tecnologia permite que vejamos shows ao vivo e “câmeras” live como a twitcam, mas foi através chamado streaming on-demand, como é o caso do já citado Netflix, que a coisa se popularizou. O modelo é sempre muito parecido: cobra-se uma assinatura mensal e em troca disponibiliza-se material, filmes e séries, por exemplo, que podem ser assistidos e acessados de diversos dispositivos. Simples, prático, rentável.
O streaming e o teatro
A onda do streaming não demorou para chegar aos palcos. Não é de hoje, nem mesmo de ontem, que a tecnologia nos permite, por exemplo, acompanhar espetáculos teatrais ao vivo pela internet. Diversos grupos transmitem hoje em dia suas peças em lives pelas diversas plataformas que “sustentam” o serviço. A mais famosa delas, hoje em dia, talvez seja o próprio Instagram, donde podemos acompanhar diversos grupos que, vez ou outra, executam essas transmissões.
O troço é muito interessante. A possibilidade de acompanhar um trabalho em tempo real, do outro lado do Brasil, por exemplo, impressiona e encanta. Não há pessoa que adore teatro, seja ela profissional da área ou não, que não dê, vez ou outra, uma olhadela nessas transmissões, nem que seja por mera curiosidade. Arrisco dizer que com o passar do tempo existam alguns grupos que tenham espectadores online quase no mesmo número, ou em número até maior, do que espectadores de corpo presente na platéia física. Mas como sempre acontece, quando o assunto é tecnologia, a coisa não parou apenas nas transmissões online, foi adiante, foi longe.
Em 2008, a francesa medici.tv começou a operar como a primeira provedora de peças teatrais, óperas e espetáculos de música clássica da internet. O catálogo contava com poucas opções, é verdade, mas a maioria delas eram obras que contavam com nomes consagrados da música e das artes cênicas francesas, como Gustavo Dudamel, por exemplo. O intuito era claro: popularizar, na base do afeto, algo que soava meio estranho aos ouvidos. Segundo o presidente da empresa, Hervé Boissière, em entrevista ao El Pais espanhol, “foi necessário muita paciência, seriedade e uma visão a longo prazo” para não desistir da coisa.
Claro, não é difícil torcer o nariz para a ideia de assistir a teatro gravado, algo que logo de cara já soa artificial, diferente da live que tem o apelo do “ao vivo”. Mas de clique em clique, sem pressa, a ideia foi pegando e a coisa se espalhando. Hoje, a francesa é líder do mercado mundial e se consolidou como uma empresa de valor considerável no mundo digital. A ideia agradou e se espalhou por aí, conquistando inclusive muitas pessoas ligadas ao teatro. Em Barcelona, por exemplo, a PlayTheatres conta com apoio de grupos de que enxergam na plataforma uma possibilidade de criar um novo público, futuramente físico, e driblar a crise que belisca as artes espanholas.
No Brasil, com produção teatral considerável tanto em qualidade quanto em quantidade, a Cennarium, empresa brasileira desse segmento, foi escolhida em 2017, pelo voto popular, como o melhor app de entretenimento do prêmio mais importante do mercado brasileiro de conteúdo móvel, mostrando que existe, ao menos aparentemente, a aceitação do público a essa nova maneira de “consumir” teatro. Mas, como sempre, as opiniões mudam conforme o rumo do barco.
De início, como era de se esperar, a novidade causou pânico. Muitos grupos, profissionais da área, jornalistas culturais, acreditavam que a novidade afastaria de vez o público das salas de espetáculos. Outros, mais otimistas como os espanhóis, acreditavam que a novidade falava a língua dos jovens e poderia criar um interesse, ou uma curiosidade, que os levaria, uma hora ou outra, até as salas. Outros, ainda, acreditavam no potencial anarquista da coisa, mesmo ela sendo um grande negócio, e diziam que a mensalidade (em média R$ 20,00) é mais barata do que a meia entrada costumas nas bilheterias nacionais e isso torna o teatro acessível. Foi um bafáfá!
Lembram das antigas revistas de espetáculos? Pensem no streaming como elas, só que com vídeos na íntegra.
O mercado, que não dorme no ponto e tem fome de leão, pouco ligou pra coisa. Viu-se a possibilidade de ganhar dinheiro? Faça sem pestanejar! Dito e feito. Hoje a coisa é pelo menos um grande negócio, e por isso mesmo a tendência é de que cresça cada vez mais e dê grana (não aos artistas, nunca sobra pros artistas!) pra essa gente que empreende.
A verdade é que o streaming é interessante em diversos aspectos. A ideia de filmar espetáculos sempre me pareceu excelente. Documentar algo como o teatro, uma arte que é carregada pelo vento, é uma forma de eternizar grandes obras. Acadêmicos, por exemplo, podem guiar-se cada vez mais por vídeos de peças para desenvolver seus estudos, coisa antes feita através de fotos e material escrito. Além disso, é realmente possível que a curiosidade faça o público ir in loco algumas vezes, e nesse caso nada como ter em mãos uma infinidade de peças para guiar e fazer folia com o desejo antes de ir de fato ao teatro.
Lembram das antigas revistas de espetáculos? Pensem no streaming como elas, só que com vídeos na íntegra. Mas espera, tem coisa aí. Como diz o ditado, nem tudo que reluz é ouro, então vamos devagar com o andouro que o santo já caiu. Como cantou o gênio Itamar Assumpção, “porcaria na cultura tanto bate até que fura”, por isso é preciso ver que tipo de catálogo pode-se encontrar nessa ou naquela plataforma no intuito de evitar que uma enxurrada de comédias fáceis e peças caça-níqueis nos transforme em mocotó ao primeiro clique.
Não há mais no mundo espaço para paranoias e medos absurdos. Ir ao teatro é uma experiência única, sensorial, e é evidente que tal experiência se dá através da presença, do corpo presente, e que isso será sempre insubstituível. O teatro é feito no momento, no aqui e agora, e pulsa demais para ser aprisionado em um take. Teatro tem cheiro, tem toque, tem pele, tem alma que avoa e não cabe numa tela fixa, plantada no de mogno da firma. Teatro não é isso. A experiência do teatro não envolve apenas a peça, a sala de espetáculos, ela vai além, muito além. A experiência do teatro é o encontro, ela envolve o outro, o pé na rua, o flanar pela cidade.
O streaming nunca dará isso a seus assinantes, é bem verdade, mas ele é bem chegado. Não pode-se, como já disse, evitar o futuro, ficar de careta pra ele, torcendo o nariz. O futuro chega, se impõe, e é melhor subir no rabo desse cometa ao invés de ficar de crise ou de birra. O que aconteceu ao jornal que passou a noite acordado com medo do fim do papel e perdeu a hora na manhã seguinte? E ao livro que, com medo do Kindle, se escondeu no último andar da prateleira? Pois é, ninguém se lembra.