O teatro logo ali, na tela, ao alcance de um clique e com todas as “mordomias” que seu estado natural, bruto e analógico não admite: zoom, pausa, controle de volume. Na última semana, foi justamente sobre essa nova possibilidade de teatro que tratamos aqui. Espetáculos em época de isolamento; peças em tempos de pandemia. Um novo teatro se anuncia? Talvez.
É impossível não ver, como afirmei no último texto, uma possibilidade de transformação da maneira de se pensar, produzir e prestigiar o teatro depois que tudo isso passar. O distanciamento do público, o fechamento sem previsão de abertura das salas e dos espaços teatrais, a falência eminente de grupos que há tempos não conseguem existir sem ajudas e migalhas oferecidas por um Estado omisso e inimigo das artes; tudo isso cultiva dúvidas e caraminholas na cuca dos trabalhadores da cultura.
Se por um lado a maioria dos artistas admite que é preciso resistir a todo custo, há, noutro canto, alguns que enxergam nessas saídas uma forma de submissão e até mesmo de exploração do ofício de trabalhadores de “backstage” e artistas menos consagrados. Pelo sim ou pelo não, é necessário voltar ao tema mais uma vez e colocar em questão alguns apontamentos não tão otimistas em relação ao teatro digital nessa época de quarentena e isolamento social.
Seja no Brasil ou em qualquer outra parte do globo o cenário é o mesmo: ruas praticamente vazias. A causa desse estado é um vírus de extremo contágio que avança por todos os cantos do mapa alimentando-se de vidas e de medo numa cruzada mórbida em direção ao fim dos tempos. Se sairemos dessa ilesos, não sabemos. O fato é que a vida como a conhecemos e vivemos nos últimos anos não resistirá aos avanços desse horror revestido de realidade e, por óbvio, tudo aquilo que a vida carrega em seu ventre também deixará de existir, ao menos da maneira como conhecíamos.
Teatro digital: uma saída natural e comum a todos
Diante da impossibilidade de abrir as portas e receber o público, a internet, com sua suposta “democracia digital”, parece a ferramenta perfeita para se manter espetáculos de pé. É evidente, e isso é senso comum quando se fala no assunto, que a experiência online não pretende substituir a experiência real, mas a ideia de conteúdo artístico disponibilizado nas redes está longe de ser algo ruim, ao menos à primeira vista.
Diversos grupos adotaram a prática logo de cara e conseguiram, em pouco tempo, um aumento exponencial no número de espectadores virtuais. Uma multidão de perfis se espreme entre frames para acompanhar espetáculos disponibilizados, muitos deles por tempo determinado, e a impressão é de que a rede, de alguma maneira, acaba levando ao teatro pessoas que não tem o hábito de frequentá-lo da porta de casa pra fora.
Evidente que as limitações físicas de um espaço não podem, e nem devem, ser colocadas em xeque comparadas ao número infinito de acessos que um site de vídeos possibilita, mas é também evidente que muitos espetáculos inacessíveis, seja por questões geográficas ou econômicas, podem agora ser apreciados por qualquer pessoa que tenha acesso a internet no seu dia a dia.
O russo Bolshoi, o brasileiríssimo grupo Galpão, os franceses da Usina de Tolouse, o Colectivo Frango da Espanha, o Paseo La Plaza de Buenos Aires; todos esses grupos e espaços, além de outros comentados no texto anterior e uma imensidão que jamais caberia aqui, provam que a migração forçada é um sucesso absoluto, ao menos quando o assunto leva em conta o número de espectadores.
Essa capacidade de se reinventar rapidamente e tomar a internet de assalto levou muitos, inclusive este que vos escreve, a comemorar de bate-pronto a vitória. Ainda acredito que o troço tem muito de bom, muitíssimo aliás, mas depois da publicação do texto da semana passada conversei com alguns amigos, li artigos por aí e, um tanto por obrigação, e outro tanto por considerar pertinente, resolvi colocar por aqui alguns apontamentos sobre a iniciativa.
Nem tudo são flores no jardim cibernético
O vácuo digital no qual a rede se apoia e se vende é infinito. Nessa realidade paralela que aos poucos se apropria do mundo, a busca incansável por likes e seguidores é uma máquina de construir e destruir tudo aquilo que toca. Nada escapa ileso: reputações, passados, obras. Assim, a primeira das dificuldades que me apontam é a de que ele só é acessível aos grupos e artistas que possuem não só intimidade com esses mecanismos mas também as ferramentas e meios necessários para disponibilizar, divulgar e hospedar suas obras.
A internet acaba acumulando público para grupos e espetáculos já consagrados enquanto obras menos conhecidas acabam se perdendo no vasto mar de informações que a internet carrega.
Um amigo observou muito bem que “uma peça mal filmada, por celular por exemplo, sem a captação adequada de som, não consegue ser vista por mais de 10 minutos nem com toda boa vontade do mundo”. Elementar, caros leitores, e muitos grupos, jogados à mingua, não dispõem do aparato necessário para invadir os sites de vídeo. Mas as impossibilidades vão além das questões técnicas.
Outro apontamento, muito pertinente, é o que defende que grupos pequenos, e artistas solitários, geralmente não gozam do prestígio cibernético do qual grandes companhias se orgulham. Chega a ser absurdo comparar o alcance que uma peça de Os Satyros ou do Oficina, por exemplo, citando os dois grupos paulistanos do texto anterior, com artistas que sobrevivem do boca a boca e das rodas de conversa que acontecem nos pós-espetáculos e nos botequins ao redor de espaços de apresentação.
Segundo esse apontamento, a internet acaba acumulando público para grupos e espetáculos já consagrados enquanto obras menos conhecidas acabam se perdendo no vasto mar de informações que a internet carrega. Visto assim, a possibilidade de reinvenção acaba restrita ao prestígio e as possibilidades de quem já conta com um público cativo, construído através dos anos, deixando de lado a maioria dos artistas que vivem e sobrevivem anonimamente de seu ofício.
Por fim, ao menos por enquanto, uma questão colocada por um colunista do jornal alemão TAZ merece devida atenção. Segundo o artigo, a ideia de apresentar espetáculos na internet é necessária e se anuncia como uma grande saída, no entanto soa meio manca a medida que “joga luz” apenas em artistas, esquecendo completamente dos trabalhadores que, por trás da cena, tornam o espetáculo possível.
As lives e encenações gravadas, segundo o artigo, deixam no escuro, como de costume, contra-regras, maquinistas, bilheteiros, camareiras e tantos outros profissionais que se dedicam, também, de corpo e alma às artes. Ainda segundo o TAZ, a preocupação em relação às artes sempre leva o holofote aos artistas e criadores, considerando menores, ou inexistentes, trabalhadores da cultura que são tão imprescindíveis quanto qualquer outro, apesar de, geralmente, não constarem nas fichas, folhetos e programas.
Estes profissionais não têm seu nome lembrado, trabalham feito fantasmas no oco do palco e assim continuam desde os primórdios da cena. Triste, mas de certa forma verdadeiro. Papo reto, duro e, apesar de doído, necessário.
Contra tudo e todos o teatro resiste
Entre o bem e o mal, ora capenga e ora vibrante, o teatro resiste. Essa nova vida que se anuncia a todos os espetáculos, entre eles o futebol, ainda nos parece tão distante quanto incerta. Se, entre gritos histéricos de populares e chororô de empresários, o mundo começa a ensaiar uma volta em marcha lenta em direção à uma normalidade completamente anormal, é impossível prever quanto teremos novamente a possibilidade de adentrar uma sala de espetáculo.
Cinemas, teatros, museus e campos de futebol, por exemplo, vivem do encontro, do outro perdido na multidão, e essa nova vida que virá não admitirá, por um bom tempo, esse tipo de aglomeração. Reinventar-se é, acima de tudo, quebrar as correntes que nos prendem no lugar da comodidade, e esse exercício de liberdade prescinde, mais do que ação, de imaginação. A boa notícia? Apesar de tudo, ainda nos é permitido sonhar.