Quando o corpo padece, a alma voa. Todos sabem que envelhecer não é tarefa fácil. Na realidade, a ação do tempo é absolutamente difícil de compreender e aceitar, muito por conta do que essa ação carrega em si: a possibilidade do fim. De todas as sacanagens divinas, e olha que não são poucas, a maior delas é sem sombra de dúvidas a nossa maior obsessão: a morte.
Com seu caminhar calmo e constante, munida de sua capa negra e de uma foice tão afiada quanto o tempo, a maldita está sempre a postos para nos arrancar a vida e a paz. Tão onipresente quanto o Criador, e ainda mais real do que o próprio, ela é o fim e a causa de todas as desgraças da terra. A morte, como diz o ditado, é a nossa única certeza. Além disso, é também o nosso maior pesadelo e a única companhia eterna que carregaremos até à cova ou ao forno.
Se há ao menos uma coisa boa nessa praga é que ela nos dá a sensação de finitude, e com ela a vontade de viver tudo o quanto for possível, intensa e furiosamente. Essa eterna peleja com a morte é a única coisa que nos mantém vivos. Que essa peleja é briga perdida todos sabemos, no entanto, quando vemos cair gigantes, quando assistimos tombar guerreiros, percebemos que até mesmo os imortais se rendem aos gélidos lábios dessa dama perigosa. Um desses guerreiros foi Luiz Carlos Maciel, o filósofo e guru da contracultura, como ficou conhecido, que no último sábado (09) entrou de vez para o seleto grupo daqueles homens maiores que a própria morte, e que se tornam eternos por conta de sua obra e de sua contribuição para o mundo.
Maciel foi filósofo de formação, teatrólogo por opção e destino, inquieto por natureza e guerreiro por vocação. Homem de múltiplos talentos, transitou por diversas áreas artísticas, sempre com criatividade e potência.
Maciel foi filósofo de formação, teatrólogo por opção e destino, inquieto por natureza e guerreiro por vocação. Homem de múltiplos talentos, transitou por diversas áreas artísticas, sempre com criatividade e potência. [highlight color=”yellow”]O currículo do homem, além de extenso, é absolutamente coerente e impressionante[/highlight]. Formou-se em 1958, pela Universidade do Rio Grande do Sul, em Filosofia. Enquanto estudava por lá, desenvolveu o gosto pelo teatro, atuando e dirigindo peças amadoras. Em seguida, no ano de 1959, recebeu uma bolsa de estudos da Escola de Teatro da Universidade da Bahia.
Nessa época, entra em contato com o extasiante cenário cultural dessa abençoada terra e conhece artistas como Glauber Rocha, Caetano Veloso e João Ubaldo Ribeiro, entre outros. Em seguida, estudou direção teatral e realização de roteiros na Fundação Rockfeller, em Pittsburg. Além de tudo isso, ainda arrumou tempo, e talento, pra ser um dos fundadores do semanário O Pasquim, assinando a coluna “Underground”, de onde ecoaram os primeiros gritos da contracultura brasileira.
Por conta de sua atuação no semanário, foi preso em 1970, junto a maioria da equipe d’O Pasquim, e passou dois meses encarcerado na Vila Militar, no Rio de Janeiro. Apesar da carreira extensa, [highlight color=”yellow”]é possível dizer que foi no teatro que Luiz encontrou definitivamente o espaço para a transformação do homem[/highlight]. A carreira de Maciel se mistura com o momento de renovação do teatro brasileiro, do qual foi um dos principais expoentes e inventores. Esteve, por exemplo,no processo de criação da peça O Rei da Vela, do Teatro Oficina, remontada em 2017 em comemoração aos 50 anos da montagem e aos 80 anos de sua criação por Oswald de Andrade, onde coordenou oficinas de improvisação para os atores, acompanhando todos os passos da montagem.
Diretor preciso e meticuloso, foi censurado com a peça Barrela, primeiro texto de Plínio Marcos, em montagem do grupo Teatro Jovem. Além de atuar e dirigir, manteve uma coluna onde pensava as artes cênicas no jornal O País. Seria impossível enumerar e comentar todos os trabalhos, toda a importância e contribuição de Luiz Carlos para o teatro e para a cultura brasileira. É preciso, também, reconhecer a força de sua figura em relação ao nosso teatro mais interessante, utilizando-se para defini-lo o termo que bem entender – experimental, vanguardista, contracultural -; a verdade é que, como tantos outros, [highlight color=”yellow”]Luiz é um pouco do teatro brasileiro e sempre o será[/highlight].
Charles Baudelaire, o famoso autor d’As Flores do Mal, escreveu que a morte é “pórtico aberto sobre os céus desconhecidos”. Um pulo no nada, de corpo e alma. Luiz Carlos Maciel, que era fã declarado do poeta francês, agora habita esse desconhecido e plácido céu, ao lado de tantos outros imortais que, como ele, viverão eternamente enraizados em nossa história, nossa cultura e nos nossos corações. Obrigado por tudo, Guru!