No já longínquo ano de 2000, aos 20 anos, tive a oportunidade de visitar o prédio da MTV, em São Paulo, junto de mais três amigos. Todos éramos estudantes de Comunicação vindos do Rio Grande do Sul. Conhecemos toda a estrutura apertada do prédio, localizado na avenida Alfonso Bovero, no bairro Sumaré.
No horário, ocorria uma transmissão ao vivo do programa Supernova, e os apresentadores Didi Wagner e Marcos Mion estavam em estúdio. Pudemos adentrar esse espaço em um momento de intervalo do programa, e trocar breves diálogos com os dois apresentadores, que iniciavam naquela época sua carreira no canal. Nesta conversa, Didi olhou para nós e disse: “vocês são a cara da MTV”. Eu, imediatamente, respondi: “é que nós vamos vir trabalhar aqui um dia”.
Obviamente, nenhum dos quatro acabou trabalhando no canal. Mas essa lembrança, para mim, tem ligação com o entendimento que tenho sobre o que foi a MTV Brasil em seus tempos áureos. Inaugurada no dia 20 de outubro de 1990, a versão brasileira da “music television” americana marcou a construção da identidade dos jovens de pelo menos três gerações – os nascidos nos anos 70, 80 e 90. A emissora ofereceu bastante materiais para isso: apresentadores marcantes (chamados de VJs), com quem os espectadores conseguiam se identificar; acesso aos videoclipes e aos lançamentos musicais nacionais e estrangeiros; vinhetas modernas e toda uma concepção de linguagem absolutamente atraente, pedindo para ser usada e replicada; programas sobre comportamento e discussões atuais, inferindo diretamente na formação dessa opinião pública jovem.
É preciso relembrar que a MTV reinou num mundo sem internet. Hoje já é difícil descrever aos mais novinhos o que significava viver sem poder recorrer ao Google. Não obstante, crescer nos anos 80/90 pressupunha uma série de empenhos que hoje já parecem distantes: para ver filme, era preciso recorrer ao videocassete ou ao DVD. Para conhecer pessoas diferentes, era preciso encontrá-las presencialmente em algum local ou então recorrer a tecnologias engessadas (como correspondentes de carta que você encontrava via anúncios de revista – e não estou falando sobre namoro, mas sim encontrar pessoas interessadas em música, cinema, quadrinhos, etc.). Para ouvir o novo single da sua banda favorita, era preciso recorrer às lojas da Galeria do Rock, em São Paulo, que importavam esses discos e enviavam para o Brasil inteiro.
Todos nós, adolescentes ou jovens adultos, buscávamos organizar nossa “agenda” de afazeres de acordo com a programação do canal.
Com isso tudo, tento aqui situar o contexto e a importância da MTV. Todos nós, adolescentes ou jovens adultos, buscávamos organizar nossa “agenda” de afazeres de acordo com a programação do canal. Ao meio-dia, o encontro era com Cazé Peçanha no Teleguiado, programa ao vivo baseado no improviso e das tiradas do apresentador, que ligava para pessoas que haviam se cadastrado para que elas pudessem pedir um clipe. No Barraco MTV (cujo cenário improvisado e apertado buscava dar literalmente a sensação de um barraco), Astrid Fontenelle juntava formadores de opinião para discutir algum assunto polêmico na semana. No Disk MTV, Sabrina Parlatore (dentre várias outras apresentadoras, mas aponto aqui a da época em que eu acompanhava) criava momentos de tensão para divulgar quais os clipes melhores votados pelos fãs, que “brigavam” via ligação telefônica para levantar os seus ídolos.
A MTV abordava também um espaço de acolhimento para as mentes divergentes do mainstream. Minha expectativa semanal era o sábado à noite para assistir ao Lado B, apresentado pelo “reverendo” Fabio Massari, que trazia as bandas do que se chamava, na época, de indie: os músicos independentes desconhecidos de quase todo mundo. O Yo! MTV, apresentado por Rodrigo Brandão, era o local exclusivo do hip hop na programação. No Gordo a Go-Go, João Gordo personificava o mais desbocado apresentador de todos os tempos.
Como já dito, a MTV não falava apenas de música – ela ajudava a definir o que significava ser jovem e crescer num mundo pós-moderno, sem o apoio de grandes referências tradicionais (como o emprego garantido, a igreja, os partidos políticos, etc.). Lembro do impacto causado por vinhetas que circulavam dentre a programação, em que um então desconhecido Matheus Nachtergaele provocava o espectador a sair de suas certezas. A MTV ainda discutiu abertamente sexo (em programas como Ponto Pê, em que Penélope Nova atendia ligações telefônicas num cenário lascivo, e Erótica MTV, com Babi Xavier e Jairo Bauer). Na seara dos reality shows, produziu o seu próprio: 20 e poucos anos trazia episódios em que se acompanhava a vida de alguns jovens em São Paulo. Além disso, a MTV instituiu a importância do dia 01 de dezembro, dia da luta contra a AIDS, quando suspendia toda a sua programação para falar apenas de um tema.
É preciso lembrar que a MTV foi responsável também pela inovação da linguagem televisiva, uma vez que muitas coisas que se tentou lá, foram mais tarde replicadas em outras emissoras. O Piores clipes do mundo, que alavancou a fama de Marcos Mion como apresentador/ comediante a patamares estratosféricos, é a “matriz” que foi levar à proposta do Legendários, seu primeiro programa na Record, e cujos elementos descobertos lá ainda temperam hoje o seu trabalho como apresentador de A Fazenda. O humor algo tosco/ algo nostálgico da trupe de Hermes & Renato ainda hoje é relembrado e revisitado como algumas das coisas mais engraçadas já feitas na televisão. O Comédia MTV, que lançou nomes como de Dani Calabresa, Marcelo Adnet e Tatá Werneck, também inaugurou o tom do improviso e do stand-up comedy como parte hoje indissociável do que significa humor televisivo (e que se cumpre, como maestria, em programas como Lady Night).
Depois de uma trajetória bem-sucedida, a decadência da MTV foi marcada por uma decisão impactante: em 2006, o canal anunciou que deixaria de exibir videoclipes, formato presente no próprio nome da emissora. Antevia, portanto, a popularização das plataformas digitais e do Youtube. Em breve, ninguém mais esperaria para ouvir e “ver” música na TV, se podia fazer isso a qualquer momento. A MTV aos poucos troca de cara, e se torna no que é hoje: um canal centrado sobretudo em reality shows de cunho sexual.
Obviamente, a história do canal passa por muito mais do recorte que faço aqui, atravessado por uma memória afetiva. Celebrar os 30 anos deste canal é, por fim, lembrar que TV vai muito além da transmissão de sons e imagens a partir da lógica das emissoras. Se um dia tantos jovens sonharam em trabalhar na MTV foi porque, em alguma medida, ela foi a nossa casa.