Um dos memes mais populares em 2016 (e resgatado eventualmente até hoje) é a frase “isto é muito Black Mirror”. Como todos sabem (mesmo os que não assistiram ao programa), trata-se de uma referência à célebre série do Channel 4, canal público britânico, que constrói narrativas de ficção científica que tematizam os efeitos (negativos) das tecnologias na vida social. Evocada com tom irônico, a sentença “isto é muito Black Mirror” era lembrada para tirar sarro dos espectadores propensos a reduzir uma complexa e profunda discussão a partir de um programa de TV.
Parece-me que, por outro ângulo, o meme ri de outra coisa: do nosso fascínio por tudo aquilo que tem um certo verniz de cientificidade, tal como o programa da Channel 4. Como se o simples fato de assistir a Black Mirror nos tornasse mais cultos ou inteligentes. Temos uma certa atração irresistível pela sensação de que, mesmo nas coisas mais banais (como o consumo do entretenimento), estamos, de fato, nos aproximando de algo de maior relevância, de conteúdo com alguma característica edificante. E, claro, nada mais edificante que a própria ideia da ciência – ela mesma é, afinal, um signo, o qual o associamos a diversos sentidos e discursos.
Trago este preâmbulo para, por fim, abordar o mais recente (e bizarro) reality show da TV aberta, estreado na última terça: o programa A Casa, da Record, apresentado por Marcos Mion. A premissa da atração é fundamentalmente sádica. Em uma casa de cerca de 120 metros quadrados, 100 voluntários irão viver e (tentar) conviver. O sadismo está no detalhe: a casa está preparada para acomodar apenas 4 pessoas. A “diversão” do programa será ver como as 100 pessoas irão fazer para sobreviver neste cenário subumano. Tudo – da água à comida – é fracionado ou cobrado dos moradores.
Se todo reality show tem, em essência, algum grau de crueldade, A Casa inova justamente em assumir este elemento como sua característica principal.
Há, ainda, um prêmio – de 1 milhão de reais – mas, pasme, o valor serve para arcar os custos da vida de todos estes indivíduos. O vencedor levará para casa a “sobra”, já que todos os valores são inflacionados (pagar um almoço, por exemplo, custa 2 mil reais). Ou seja, fica subentendido que o verdadeiro prêmio (ou a verdadeira moeda de troca) é a visibilidade angariada quando se aparece em um programa de televisão, mesmo que seja apenas fazendo o mais básico de tudo: sobrevivendo.
Ou seja, se todo reality show tem, em essência, algum grau de crueldade, A Casa inova justamente em assumir este elemento como sua característica principal. Mas tudo isso chega revestido sob uma expectativa de experimento científico: é assim que o programa é significado para nós e a razão pela qual parecemos propensos a assisti-lo. Em entrevista a Fábio Porchat, o apresentador Marcos Mion definiu A Casa como um “microcosmos da realidade” e um “espelho social” – não seria, afinal, mero voyeurismo barato. Em nossa pretensão enquanto “cientistas” do cotidiano, o programa nos contempla nos impulsos mais profundos.
E já que A Casa serviria como um laboratório sobre os limites da sanidade alheia (e, consequentemente, sobre os limites do que pode ou não ser exibido em TV), segue aqui uma lista de temas que já podem ser problematizados a partir do primeiro episódio (dando margem, assim, para que um espectador possa usar o programa para manter várias conversas edificantes com outras pessoas):
– O programa é claramente de resistência: ele tenta testar o que os indivíduos conseguem aguentar. No primeiro episódio, uma participante criticou os demais pois estariam desperdiçando os itens da casa necessariamente (como água para tomar banho e a comida). Ela argumenta que todos ali estavam cientes de que este é um reality show sobre precariedade e, por isso, deveriam já estar preparados para passar sufoco. Sendo assim, em A Casa sobreviveria apenas os mais fortes ou mais adaptados, numa referência direta à teoria das espécies. O que nos leva a pensar: quem é o mais adaptado em uma situação como essa? O que tem limites éticos mais flexíveis? O que vive consumindo menos coisas? O que consegue formar alianças com mais pessoas?
– Há ainda uma discussão agregada sobre gestão e gerenciamento de pessoas. Uma das regras do jogo é que haja sempre um “dono” da casa, responsável por organizar os 100 participantes e tomar as principais decisões – sobre, por exemplo, como o dinheiro de todos será gasto. Na primeira semana, o dono já foi acusado (à boca pequena, é claro) de má gestão, de não ser autoritário, de ser autoritário demais, de desperdiçar o dinheiro ou gastar muito pouco, etc. Uma clara referência às consequências inevitáveis ao processo de liderar grandes populações;
– Os sentimentos formados dentro de um grupo também deverão ser tema de discussão. A configuração do jogo parece ter sido pensada para isso. No primeiro episódio, por exemplo, o “dono” e um acompanhante ganharam um prêmio de receber massagens e o direito de relaxar numa banheira tomando cerveja. A jacuzzi foi estrategicamente colocada à visão de todos os demais 98 participantes, suscitando sentimentos diversos – como o humor, a raiva e a inveja. Testa-se, portanto, as reações mais primitivas dos que se submetem ao reality, mesmo sabendo que é “apenas um jogo”;
– A sensação de ver 100 pessoas em 120 metros quadrados é de que, num primeiro momento, a casa se tornou uma grande micareta. Juntas, as pessoas pareciam estar em um estado meio animalesco, fora de si – numa clara remissão às teorias de Gustave Le Bon acerca dos comportamentos das massas, hoje frequentemente refutadas. Resumidamente, Le Bon gerou muita repercussão com estudos que garantiam que o sentimento de estar numa multidão desperta o mais brutal do indivíduo. Juntos, até o momento, os participantes de A Casa parecem ter se tornado meio bobos, mas certamente deverão em breve ficar mais agressivos;
– Em termos de linguagem televisiva, o programa pode trazer alguns aspectos interessantes. Como, afinal, a Record irá criar uma narrativa plausível a partir de um programa com 100 personagens? Como decidir quem será destacado ou não? E como o apresentador Marcos Mion criará vínculos com eles? Já no primeiro episódio, uma característica bem típica da ficção científica distópica (bem Black Mirror isso!): os participantes são mais identificados por números que pelos nomes.
De alguma forma, A Casa promete ser um laboratório do humano e o que acontece quando estamos juntos. Um verdadeiro fast food de experimentos científicos. E mais uma vez ficaremos vidrados, juntos, perante um sentimento meio conflitante que é de ter algum prazer assistindo ao sofrimento (voluntário) de uma centena de pessoas.