Nós sabemos que a violência é presente na vida de muitas mulheres. Porém, a agressão física não é a única forma de agressão que muitas vítimas sofrem. Os relacionamento abusivos são extremamente comuns e, em muitos casos, deixam consequências psicológicas sérias. Em uma reportagem que escrevi ano passado, obtive dados que mostram que as ocorrências decorrentes de ameaças e injúrias feitas na Delegacia da Mulher de Curitiba são maiores do que as por lesões corporais.
Ou seja, os abusos psicológicos são mais frequentes do que os físicos, entretanto, as pessoas se indignam mais com crimes onde há agressão, se esquecendo dos emocionais. Mas, por que estou falando disso? Porque, apesar do quão indignante seja uma relação abusiva, está havendo uma romantização desse tipo de situação, protagonizada pelo casal Zeca e Jeiza (Paolla Oliveira e Marcos Pigossi) em A Força do Querer.
Como já foi dito em outro texto desta coluna, a novela apresenta personagens femininos fortes e homens com traços machistas. Nesse contexto, Jeiza mostrava ser uma personagem empoderada: é policial, luta MMA, dá mais valor à sua profissão do que aos seus relacionamentos e defendia que podia fazer e ser o que quisesse. Zeca, ao contrário, é um caminhoneiro que, desde o início da trama, já mostrou que tinha ideias retrógradas sobre relacionamentos e o papel da mulher na sociedade. E claro, como é uma novela, ambos acabaram se apaixonando e começaram a namorar.
O problema é que, se no início parecia que Jeiza ia ser o motim para a transformação de Zeca, agora o que estamos vendo é a personagem de Paolla Oliveira se deixando ser dominada e acatando ordens e opiniões absurdas do seu noivo. Desde o início do relacionamento, os dois vivem brigando e discutindo e em várias cenas o caminhoneiro protagonizou falas sobre o comportamento de sua noiva: fica bravo quando ela não pode atender suas ligações no horário de trabalho e afirma que após o casamento irá “deixar ela como ele gosta e da maneira como uma mulher deve agir”.
Contudo, se já não bastassem essas falas, nessa última semana, o casal protagonizou cenas revoltantes. No capítulo do dia 1º (quinta-feira), após uma discussão, a policial decide sair e ir num bar com amigas. Zeca fica possesso e vai atrás da noiva. Chegando no local, ele a pega no colo e a carrega para o caminhão e, apesar de se mostrar com raiva no início, ela acaba cedendo a vontade do parceiro e ainda o beija.
No dia seguinte, após o ocorrido, temos uma cena na qual Jeiza aparece se analisando em um espelho e comenta com a mãe que não está mais se reconhecendo: “Estou aqui me olhando, pra ver se eu ainda estou aqui”, disse. É um momento que demonstra bem o que acontece com as vítimas de um relacionamento abusivo: elas vão cedendo tanto às vontades e ordens de seus parceiros para evitarem brigas e discussões que vão abandonando sua personalidade, perdendo sua essência e deixando de serem elas mesmas. Há um vídeo, também em frente a um espelho, divulgado nas redes sociais, que demonstra bem essa desconstrução de personalidade.
No capítulo de sábado, dia 3, há um momento em que Zeca invoca com uma roupa que Jeiza está vestindo, dizendo ser muito decotada, e exige que ela troque. Os dois começam a brigar e a mãe de Jeiza (Gisele Fróes) derruba propositalmente café em seu vestido, a obrigando a se trocar e, assim, acatar a vontade do caminhoneiro. Este não foi o único momento em que Cândida demonstra compactuar e até concordar com algumas atitudes de Zeca, chegando até a aconselhar a filha a se submeter mais as vontades do noivo.
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O maior problema de tudo é que, mesmo sem saber onde esse relacionamento vai dar e se a autora está com a intenção de falar e debater o assunto, o público criou uma empatia pelo casal: acham incrível essa situação de gato e rato e a química entre os atores. Muitos telespectadores parecem compactuar com o pensamento da personagem de Gisele Fróes. Alguns comentários espalhados pela internet demonstram a torcida pelo casal #Jeizeca e, pior, mostram que tem muita gente que acha esse tipo de atitude do caminhoneiro normal e até romântica, alguns até defendem que “Zeca age igual homem de verdade”.
Estamos vendo a personagem de Paolla Oliveira se deixando ser dominada e acatando ordens e opiniões absurdas do seu noivo.
Isto só reforça que a mentalidade machista é muito comum, a ponto do pensamento “os homens são assim” possuir uma aceitação velada por trás de um comportamento agressivo e opressor. A sociedade tem o hábito de colocar panos quentes em cima de um relacionamento abusivo. Somos ensinadas, desde pequenas, que se um menino te bate, morde ou é agressivo, é porque ele gosta de você. Já pensou que tipo de consequência isso traz?
Obviamente que as mulheres vão aceitar serem tratadas como inferiores e justificar atitudes como ciúmes e possessão enquanto acreditarem que isso é amor. Então, quanto mais situações como a de Zeca e Jeiza forem romantizadas, mais será reforçada a ideia que essa é a realidade, e que nós precisamos aceitar um homem machista e abusivo para nos sentirmos amadas. E é claro que isso não é verdade.
A verdade é que toda mulher merece respeito, e o amor só acontece quando ele aumenta a autoestima de alguém. Ou seja, se você se sente humilhada, diminuída, ameaçada ou com medo, não é amor. Os relacionamentos foram feitos para acrescentar e melhorar a forma como as pessoas se sentem e não para distorcer o que você pensa sobre si mesma.
Já não é a primeira vez que a novela peca quando o assunto é o combate à violência a mulher. E isso é muito preocupante, pois, considerando que as telenovelas são um meio de entretenimento de massa, é o tipo de conteúdo que a maioria da população tem contato. Ou seja, nem todas têm acesso à internet e podem se engajar em discussões sobre o assunto, milhares de mulheres dependem da televisão para aprender, se informar e se divertir.
Se o namoro dos personagens for usado para mostrar os efeitos de um relacionamento abusivo e como se recuperar dele, ótimo. É o que a novela transpareceu desde o início. A função de uma novela deveria ser entreter e abordar assuntos cotidianos de forma a gerar identificação e solução, uma mudança efetiva. Porém, se por causa do gosto do público, os dois ficarem juntos no final sem que Zeca mude sua postura, será um grande desserviço para todas as mulheres que sofrem diariamente em decorrência do machismo e um reforço para as pessoas que ainda possuem esta visão de mundo.