Há um debate recorrente sobre a TV que diz respeito às mudanças que ela enfrenta no seu consumo, tendo em vista o aumento de concorrentes que oferecem conteúdos televisivos on demand (como a Netflix). A grande diferença desses sistemas é que, neles, a recepção é flexível, adapta-se aos hábitos do espectador: não preciso esperar a noite para ver meu programa favorito, pois posso assisti-lo na hora que eu quiser. As emissoras, como consequência, têm investido cada vez em plataformas digitais como o Globo Play, uma espécie de Netflix particular com todos os conteúdos da Globo. Há quem aposte que, logo mais, a própria ideia de uma “grade televisiva” não fará mais sentido.
Pode até ser que a TV logo mais se reinvente a esse novo momento e não mais tenhamos emissoras submetidas à lógica dos horários das grades. No entanto, quem aposta as fichas nessa ideia acaba por não reconhecer que a televisão on demand desvaloriza o que o veículo tem de mais especifico (e, por isso mesmo, insubstituível): a inebriante hipnose causada pelo ao vivo. Assistimos à TV, em boa parte do tempo, pela sensação de que ela opera como uma espécie de janela para o mundo, e que, enquanto a contemplamos, tudo pode acontecer – vide, por exemplo, a adrenalina que invade nosso organismo quando toca a musiquinha do “Plantão” da Globo, uma garantia de que algo em primeira mão (quando não uma cena direta, ao vivo, em tempo real) chegará até nós.
Além de concretizar uma atração quase irresistível por sua espécie de pulsão ao real, a transmissão ao vivo tem outro diferencial: traz consigo a possibilidade de vermos algo que escape do controle da própria TV, que seja imprevisto por ela mesma.
Por isso, creio que é um tanto apressado apostar que o caminho à TV sob demanda seja um caminho inevitável. Além de concretizar uma atração quase irresistível por sua espécie de pulsão ao real (como se o direto fosse mais “verdadeiro” que algo que é gravado), a transmissão ao vivo tem outro diferencial: traz consigo a possibilidade de vermos algo que escape do controle da própria TV, que seja imprevisto por ela mesma. Dito de outra forma: se os meios de comunicação on demand são como uma orquestra que toca impecavelmente, o ao vivo traz a possibilidade de vermos, inesperadamente, algum músico desafinar.
Estamos inevitavelmente atraídos, portanto, por esses “erros” que subvertem aquilo que as empresas esperam dos atores que trazem em cena. Às vezes essa subversão tem tom de crítica às emissoras (quando, por exemplo, algum transeunte se mete na frente de um repórter para tentar passar alguma mensagem). Às vezes, a graça da transmissão direta está em ver algum tropeço – como um apresentador que atropela as palavras, alguém que leva um tombo e passa vexame em rede nacional. E noutras vezes, mais interessantes, durante o ao vivo, algum personagem ousa fugir do papel que está reservado a ele dentro de um programa, por menor que seja.
É o que tivemos, por exemplo, no Big Brother Brasil nas últimas semanas, a partir de um dos seus participantes: o músico Viegas, eliminado no paredão, proferiu um discurso inesperado para a Globo. Para começar, soltou uma fala memorável e desconfortável em que relembra vários casos de pessoas vitimadas por situações de violência e que, por fazerem parte de minorias marginalizadas, foram tratadas de forma enviesada ou mesmo esquecidas pelas grandes mídias – assim como Marielle Franco provavelmente seria pouco lembrada pela TV hegemônica, se não fosse a pressão popular. Por fim, soltou um palavrão ao ser informado, logo após sair da casa, sobre a prisão de Lula.
O próprio Viegas, aliás, configurou como um personagem interessantíssimo dentro de um reality show baseado na mera interação pessoal. Interessante porque Viegas, no fim das contas, se recusou a adaptar-se a um papel destinado a ele. Negro, rapper, marginal, morador da periferia (a Cohab Juscelino, bairro de São Paulo ao qual se remetia frequentemente no programa), Viegas não se dobrou ao personagem “domesticado” esperado a ele: era quieto, taciturno, às vezes mal humorada, não dançava nas festas, não buscava agradar a todos (estratégia diferente da que pareceu ser usada por Kaysar para driblar o fato de ser um estrangeiro entre um grupo de brasileiros).
Atraído provavelmente pelo sonho de levar uma mensagem política a nível nacional (sonho concretizado sobretudo por Jean Wyllys, mas idealizado por muitos participantes), Viegas talvez tenha carregado consigo uma importante mensagem de resistência justamente por não se apresentar como o que seria esperado dele – além de ter “contrabandeado” mensagens indesejáveis ao vivo (noutro momento, ao falar ao vivo com Tiago Leifert, soltou outra fala agressiva direcionada a William Waack, demitido da Globo após o vazamento de um vídeo em que proferia comentários racistas). O negro, quando está na TV, precisa ser em alguma medida “dócil”, não causar desconforto, e mesmo carinhoso – um pouco o papel desempenhado por Lázaro Ramos em Lazinho com você (embora o ator, em toda a sua obra, seja muito mais que isso).
Não por acaso, no dia seguinte, na entrevista concedida a Ana Maria Braga no Mais Você, Viegas foi “domado” por perguntas mais diretamente ligadas ao reality show e ao blá-blá-blá sobre o que acontecia lá dentro – ainda assim, conseguiu tecer críticas aos políticos paulistanos, citando nominalmente o prefeito João Doria e o governador Geraldo Alckmin, que destinam suas ações a bairros nobres e esquecem as regiões periféricas. Tudo isso, é claro, só é possível pela dinâmica irresistível (e “ineditável”) do ao vivo, que segue absolutamente importante na lógica televisiva.