Talvez poucos lembrem, mas a MTV foi uma das primeiras emissoras a investir – e a explorar bem – os formatos de reality shows. Desde The Real World, lançado em 1992, em que grupos de jovens em uma grande metrópole viviam numa casa e compartilhavam seus estilos de vida com os espectadores, a emissora trabalhou com atrações que buscavam conquistar o público por meio da sedução da “vida real”, com seus dramas cotidianos e sua fascinante banalidade. A exploração deste estilo de programa, convenhamos, encaixa-se perfeitamente em uma programação pensada para jovens, ainda em busca de conhecer a si mesmos por meio do outro. Não por acaso, de muitos destes realities despontaram várias personalidades que viraram modelos para a vasta audiência da MTV ao redor do mundo.
Nesta nova fase da MTV Brasil enquanto canal fechado, um reality show bastante interessante tem despontado como uma das principais atrações da emissora, além de ter elevado exponencialmente a audiência noturna da programação (leia mais aqui). Trata-se de Adotada, atração que atualmente está em sua segunda temporada, e que funciona por uma premissa um tanto simples e nada inédita: uma moça é “adotada” por uma semana por uma família diferente; cada episódio é um relato deste período. A ideia já foi vista, claramente, em vários realities transmitidos como quadros de programas da TV aberta. Mas ao contrário do que possa parecer, Adotada encontra sua originalidade não na renovação do formato, mas na graça de sua protagonista – Maria Eugênia Suconic, que é apresentadora, modelo, hostess e produtora de moda, dentre outras funções – , e na especificidade da narrativa que se forma a partir de sua presença ao meio de cada família.
Antes de tudo, um comentário pessoal: sempre achei que os programas turísticos, bem como toda aquela obrigatoriedade social de observar as fotos das viagens de outrem, contêm uma boa medida de masoquismo. Qual a função de utilizar seu tempo para olhar a viagem feita por outros, as suas experiências, as paisagens vistas pelos outros por meio da mediação tecnológica da foto e do vídeo? Sempre me pareceu que há uma mesma medida de sonho, de alimentar o desejo, quanto de sofrimento, de ver, de forma vicária, algo que não se fez ou não se pode fazer. Pois bem, Adotada está algo próximo de um programa turístico feito não exatamente pela visita a outros locais (ainda que Maria Eugênia conviva com famílias de vários estados no programa), mas a outras culturas e a outras configurações de mundo mediada pelas diversas instâncias da vida humana, como sexo, religião, raça, preferências políticas, etc.

Há um certo voyeurismo em Adotada, sem dúvida, ao possibilitar a entrada na casa alheia e uma convivência com esse outro, por vezes tão diferente, por outra, mais próximo do que imaginaríamos.
Há um certo voyeurismo em Adotada, sem dúvida, ao possibilitar a entrada na casa alheia e uma convivência – claramente capturada pelas câmeras, que não estão escondidas ou impregnada nos cenários – com esse outro, por vezes tão diferente, por outra, mais próximo do que imaginaríamos. A dinâmica do encontro de Maria Eugênia com as famílias faz acontecer momentos de absoluta preciosidade. É esta espécie de embate com o estranho que faz vir à tona a riqueza da atração. Por exemplo: em um episódio, Maria Eugênia é adotada por uma família formada por um casal e dois filhos homens adultos. Em um ambiente essencialmente masculino, que “cheira a testosterona”, como se fala nos diálogos, a configuração da inserção de um elemento feminino faz explicitar uma atmosfera em que o machismo é regra, pois é velado, naturalizado. Imediatamente, todos os homens passam a tratá-la com certa condescendência, e instintivamente tentam seduzi-la, mesmo sem se darem conta. Já numa casa cheia de mulheres, a disputa é outra, por certo protagonismo e pelo apego à autoimagem. Quando Maria Eugênia propõe às irmãs a brincadeira de montar-se como drags, uma das irmãs não consegue “exagerar-se”, levar-se menos a sério.
Em outras palavras, parte do sucesso de Adotada se dá pela presença espirituosa de Maria Eugênia, também conhecida como Mareu, uma mulher com um tanto de pós-adolescente, sem papas na língua, com posições fortes e respostas afiadas para defendê-las. Mareu tem um tanto de performer, e suas tiradas são, quase sempre, engraçadíssimas. Bastante provocadora – em vários episódios, por exemplo, revela-se um pouco preguiçosa nas casas e avessa ao trabalho braçal -, ela é firme nas suas convicções, gerando certos encontros que podem render debates interessantes. Em um dos programas, é acolhida por uma casa em que há um filho assumidamente gay e um pai que não exatamente o rejeita, mas sem dúvida não se adequa como o simpatizante da sigla LGBTS. Maria Eugênia, indignada, passa a confrontar o pai em sua própria casa, chegando a mentir para ele que seria travesti. Há uma reflexão pertinente sobre liberdades e limites aos outros que Adotada, em sua perspectiva pouco atrelada ao politicamente correto, pode suscitar.
Ainda que em vários episódios haja embates e mesmo brigas, as transformações passadas por Maria Eugênia ao longo das temporadas são visíveis, e trazem uma certa mensagem sobre a possibilidade de consenso em um mundo contaminado pelas diferenças. É por explorar de forma tão pouco óbvia esta espécie de “turismo do outro” que Adotada se torna uma das atrações mais interessantes atualmente na televisão brasileira.
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