Ultimamente, muito tem se falado de “desenhos animados para adultos”, como se isso fosse novidade. De fato, eles se tornaram muito mais populares e variados. Mas o que faz com que uma série animada seja classificada como “para adultos”? Onde é que essa fronteira pode ser traçada?
Primeiro, é preciso entender que ela nem sempre existiu: no começo, animação era algo que se supunha que podia ser apreciado por todos. Os antigos curtas dos Looney Tunes, por trás de todo o pastelão, tinham alguns comentários que adultos seriam capazes de entender melhor. E mesmo os filmes da Disney, mais voltados para crianças, ainda possuíam certo teor artístico que adultos apreciam.
A grande virada foi a televisão. Por anos, a animação para televisão era produzida com orçamentos mínimos e de forma mais desleixada. Se alguém fosse assisti-las, teria que ser um público que não levasse animações tão a sério e fosse indiferente a certas negligências – ou seja, crianças. E quando se descobriu que desenhos animados funcionavam como excelentes comerciais para brinquedos, pronto: criou-se uma cultura em que animações eram algo para crianças. Quando os curtas dos Looney Tunes passaram a ser exibidos na TV, viraram “desenhos para crianças”. E nada era tão maduro a ponto de não ser um “desenho para toda a família”.
Quando vemos um personagem animado passar pelos horrores cotidianos ou extracotidianos sobre os quais só aprendemos na fase adulta, nos emocionarmos de um jeito que não aconteceria em uma série live-action.
Lógico que estamos falando da animação norte-americana e europeia. Na Ásia foi diferente, com animações de teor mais maduro tornando-se comuns no Japão, na Coreia e na China. Mas quando vinham para o ocidente, o que acontecia? Um corte aqui, uma mudança na tradução ali, e pronto, a série animada estava adequada para ser exibida a crianças.
Então, no final dos anos 80, estreou Os Simpsons. O programa foi uma revolução: referências a alcoolismo, xingamentos, personagens que desrespeitavam ou abusavam da autoridade sem consequências… E tudo isso na forma de desenho animado. Pode não parecer nada de mais, mas para a época foi chocante: uma série animada pensada nos adultos e contraindicada para crianças.
Com os anos, seu humor chocante amainou-se e se tornou mais “familiar”, mas o passo inicial já estava dado, e outros resolveram investir em séries animadas para adultos. Uma Família da Pesada, Bob’s Burgers, as animações da MTV, até o Cartoon Network criou o Adult Swim, bloco de programação dedicado ao formato. Mesmo animações infantis ficaram mais refinadas para chamar a atenção dos adultos. A primeira série animada da Netflix, BoJack Horseman, foi voltada para adultos, seguida de outras como Big Mouth. O que era raro está mais popular do que nunca.
E o que define uma série animada como sendo “para adultos”?
Primeiro: adultos conseguem se identificar com ela. O enredo, o humor e o drama lidam com experiências pelas quais só passamos após certa idade. Animações para adultos entendem que, às vezes, a vida simplesmente não acontece do jeito que gostaríamos: terminamos relacionamentos, temos péssimos dias no trabalho, botamos tudo a perder por causa de uma decisão errada, nos frustramos. E têm a maturidade de mostrar que nem sempre essas coisas têm volta.
Isso não quer dizer que elas são mais sérias ou pessimistas do que animações infantis: algumas nos mostram que, quando tudo dá errado, o jeito é achar algo bom e se ater àquilo, por menor que seja. Elas também podem ser divertidas, relaxantes e nos fazer sentir melhor. Há também as mais escapistas, abordando mundos de fantasia e ficção científica de forma grandiosa, mas com uma linguagem que definitivamente não apela a crianças. Animações para adultos nem precisam estrelar adultos: em Big Mouth, todos os personagens são adolescentes na puberdade.
Mas até aí, eu poderia muito bem estar descrevendo uma série adulta live-action. O que torna então a animação tão especial e, ultimamente, popular?
A primeira resposta é um tanto óbvia: a animação permite que essas séries sejam mais explícitas. Seja na ação, no sexo, no humor negro ou nas sátiras sociais, elas conseguem ir a extremos aos quais novelas e sitcoms não conseguem, não apenas por limitações físicas, mas porque pareceriam estranhos ou até de mau gosto fora do universo livre da animação, onde tais extremos são um sinal de sofisticação.
Mas há ainda uma segunda resposta: animações apelam para a nostalgia dentro de todo adulto. A animação infantil é algo muito presente em nossas vidas quando somos crianças. Sendo assim, quando vemos um personagem animado passar pelos horrores cotidianos ou extracotidianos sobre os quais só aprendemos na fase adulta, é difícil não associá-lo àquilo que um dia nos foi tão especial, e nos emocionamos de um jeito que não aconteceria em uma série live-action.
Demorou, mas cada vez mais a televisão e as plataformas de streaming estão descobrindo a animação como uma forma de abordar questões que exigem certa maturidade para serem entendidas. E quando abordadas corretamente, podem se tornar verdadeiras gemas que pegam muitos adultos de surpresa – e, felizmente, têm surgido cada vez mais gemas por aí.
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