Conforme é de conhecimento de todos os que dominam a “gramática” deste veículo, os programas televisivos adoram uma história de redenção. A jornada daquele que nada tem, ou tudo perdeu, e dá uma reviravolta no destino reservado a ele é, desde sempre, um prato cheio para as atrações de TV. Uma simples amostragem com edições dos programas de auditório mais populares (como Programa do Gugu, Caldeirão do Huck, Domingo Show) é o suficiente para comprovar esta tese.
Creio que seja bem fácil elencar alguns fatores para explicar esta atração irresistível da TV pelas histórias de superação, como a tendência à espetacularização, ao sensacionalismo, ao apelo barato da emoção do espectador, etc. Todos estes fatores, sem dúvida, fazem muito sentido. Mas eu traria também um argumento bem simples, e bastante óbvio: por ser um veículo de natureza audiovisual, a televisão costuma explorar estruturas narrativas mais tradicionais, mais fáceis de serem acompanhadas por meio da visão e da audição. Como não é possível dar replay na televisão, pelo menos em teoria – diferente do livro, cuja materialidade possibilita a releitura, a meditação – é quase que natural que as atrações televisivas cotidianas façam uso de narrativas mais simples. Complexificá-las, ao menos na TV aberta, é correr o risco de muitas vezes perder um espectador que está desatento.
Nada mais tradicional, portanto, que a estrutura narrativa épica da história de alguém que enfrenta inúmeros inimigos, desafios e percalços para, por fim, voltar ao seu cotidiano “transformado”, com algo valioso não apenas para si, para toda a sua comunidade. Qualquer leitor que conheça minimamente a estrutura da jornada do herói, brilhantemente analisada pelo mitólogo Joseph Campbell, sabe ao que me refiro aqui.
Transbordam nas atrações televisivas incontáveis histórias dos menos afortunados, dos mendigos, dos viciados em drogas, dos miseráveis, dos desempregados, das pessoas com deficiência – daqueles que, contrariando todos os prognósticos, “deram a volta por cima”, “viraram o jogo”, conseguiram triunfar. Ainda que estas narrativas por vezes mais simplifiquem a jornada de alguém do que necessariamente a dignifiquem (tema já abordado nesta coluna), esta é a regra, e não a exceção, dos quadros que exploram as histórias de vida de outrem.
Na nossa cultura essencialmente punitiva, não há espaço, por exemplo, a uma ‘ex-prostituta’, ou a um ‘ex-pedófilo’, ou a um ‘ex-estuprador’.
Na semana que se passou, um episódio interessante ajudou a desnudar a lógica frágil – e um tanto hipócrita – da “televisão da superação”. Falo da “entrevista” com Andressa Urach no programa Jornal do Meio-Dia, da retransmissora da TV Record em Florianópolis (veja abaixo). Andressa pode ser definida como uma “personalidade” televisiva que angariou muita visibilidade por assumir publicamente uma trajetória marcada por acontecimentos compreendidos como socialmente condenáveis. Apenas para ficar nos principais: quase morreu após um procedimento estético, revelou-se garota de programa e relatou ter realizado uma série de procedimentos de “magia negra”. Conquistou sua vez nos holofotes televisivos ao voltar às telas – após literalmente aproximar-se da morte – arrependida, redimida e, é claro, convertida para uma religião.
Atualmente, Andressa faz uma espécie de turnê pelas retransmissoras da Record pelo país no intuito de divulgar seu livro, chamado Morri para Viver, no qual conta sua história de imersão e submersão no que há de mais sombrio do humano. Na entrevista ao Jornal do Meio-Dia, no entanto, algo aconteceu: o apresentador da atração, um senhor chamado Helio Costa, resolveu subverter a lógica de redenção que legitima a entrada de Andressa na mídia e a envolveu em um surreal confronto. “Para mim não é desculpa”, ataca Costa, referindo-se ao histórico de prostituição de Andressa e sua justificativa sobre uma infância pobre. “Se o senhor fosse uma mulher e tivesse um filho que estivesse passando fome, o que o senhor faria?”, devolve a celebridade. Ao que prontamente ouve do apresentador: “Tá pensando o quê? A minha mãe tinha cinco filhos e foi trabalhar dignamente. Ela não caiu na sem-vergonhice igual a ti”. Andressa, humilhada, diz que se arrepende do que fez e vai às lágrimas.
Há aqui um material intrigante para pensarmos nas narrativas, nas possibilidades de redenção e no estigma que cola naqueles que concretizam certas posturas, não importam quais sejam as razões. Na nossa cultura essencialmente punitiva, não há espaço, por exemplo, a uma “ex-prostituta”, ou a um “ex-pedófilo”, ou a um “ex-estuprador”. A estes, só restam a condenação – de preferência em público, para que sirvam como exemplo a todos.
Na verdade, eu diria: seja na televisão ou fora dela, não há espaço para as narrativas possíveis daqueles que cabem nestes papéis (ou você consegue imaginar um espaço em que uma prostituta possa tecer a sua própria lógica – ainda que seja para se redimir – sem cair num discurso simples da condenação?). No frigir dos ovos, talvez nós, produtores e receptores de televisão, não gostemos de uma história de redenção tanto assim – ou quem sabe achemos que nem todos têm direito a ela.
Por outro lado, alguém poderia dizer (não sem razão) que este é o preço pago por Andressa Urach pela comercialização de sua história, seja ela verídica ou não: passar a vida toda condenada ao escrutínio público, servindo de alvo às pedras alheias. Entretanto, há um fenômeno interessante que se prenuncia aqui. Ao ser humilhada em público, Andressa, curiosamente, torna-se mais humilde (vale aqui lembrar que a raiz da palavra “humilhação” é a mesma de “humilde” e “húmus”, daquilo que brota da terra e a alimenta). Sua figura, paradoxalmente, se humaniza. Talvez nenhum assessor de imprensa tenha sido tão útil a Andressa Urach quanto este senhor Helio Costa.
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