Ao longo destes quase dez anos de Escotilha, um dos temas mais tratados em nossas críticas de televisão é o poder discursivo das imagens. E certamente dá para cravar que, nas últimas duas décadas, nenhum tipo de imagem adquiriu mais valor do que a gerada de forma amadora – aquela que tem pouca ou nenhuma preocupação com seu parâmetro estético, mas que, por outro lado, é fortíssima na questão da veracidade.
O que vimos neste mesmo período de tempo foram mudanças muito profundas nos telejornais, cada vez mais abrindo mão de seus padrões consolidados (priorizando imagens bem filmadas por profissionais, estáveis, nítidas e bem enquadradas) e se aproximando gradativamente dos recursos usados por amadores. Imagens vindas de celulares (de pessoas comuns e dos próprios jornalistas) se tornaram mais aceitas e até desejáveis pelos espectadores dos jornais televisivos. Afinal, há uma expectativa (compartilhada como senso comum) de que esses retratos feitos pela população estariam mais próximos dos fatos por si do que os registros bem planejados e executados pelas emissoras.
Claro está até aqui que essa sensação de verdade é, acima de tudo, efeito discursivo. É como se, de alguma forma, alguém tivesse estipulado uma sensação de confiança no que é mostrado quando o registro é amador, e, por isso, não atrelado aos interesses de certos agentes, incluindo aqui as próprias emissoras. Dito de maneira mais simples: quando ocorre um acidente de trânsito ou um assalto, por exemplo, passamos a preferir assistir aos registros dos amadores do que os que foram gravados por profissionais especializados.
Ocorre que, por mais que essas imagens de celulares tenham nos ajudado a espalhar “olhos” em todos os lugares, elas também causaram prejuízos – como uma crença sem muita crítica de que aquilo que não é profissional é a verdade nua e crua, sem possibilidade de contra-argumentação. Isso pode, como bem sabemos, causar muitas injustiças, como o caso de pessoas linchadas por supostamente terem sido vistas em algum lugar em que não estavam.
Só que o buraco é mais embaixo, já que as imagens, diferente do que diz o ditado, não falam mais que mil palavras. Há tantas vezes em que acontece justamente o contrário: são as palavras que acabam determinando aquilo que vemos nas imagens.
A “vingança” dos registros amadores
Tudo isso que argumento acima, e que já apareceu em vários outros textos publicados na Escotilha, segue válido. Mas os episódios vividos recentemente têm nos mostrado outras facetas desse fenômeno.
O que vimos foram mudanças muito profundas nos telejornais, cada vez mais abrindo mão de seus padrões consolidados e se aproximando dos recursos usados por amadores.
Atualmente, o estado de São Paulo vive uma crise seríssima na segurança pública. Todo dia são novos casos divulgados que evidenciam um problema profundo na violência usada pela polícia, principalmente, contra pessoas pretas e pobres. Ao ligarmos a televisão ou acessarmos os portais, testemunhamos sempre um novo abuso cometido pela Polícia Militar.
O que nem sempre fica evidente nesses casos é que eles envolvem uma disputa nos sentidos das imagens. Não por acaso, uma das questões mais polêmicas no tema da segurança pública paulista é a discussão sobre a instalação de câmeras corporais nos guardas, e se elas devem ou não ficar sempre ligadas.
Até ontem, o governo do estado defendia que o policial deveria ter direito de ligar e desligar a câmera na sua farda. O argumento também poderia ser colocado assim: para o governador Tarcísio de Freitas, o policial deveria ter o controle sobre a narrativa gerada pelo próprio corpo, nesse “filme” em primeira pessoa. Ou seja: precisa ter o direito de “editar” a sua versão, já que as imagens têm poder.
Mas aí ocorreu uma espécie de levante popular, protagonizado pelos celulares. Destacam-se aqui dois casos de violência policial que geraram registros suficientes para mobilizar a opinião pública. O primeiro é o assassinato de um homem por agentes dentro de uma estação de trem em Carapicuíba. O segundo é o flagrante de um PM jogando um homem de uma ponte na zona sul de São Paulo.
Ambos os crimes só repercutiram por causa dos vídeos amadores que circularam – e seguem circulando – em looping na televisão e nas redes sociais. São eles, em sua repetição infinita, que impedem que os acusados consigam emplacar as suas versões: a de que os agentes estavam, na verdade, ajudando o homem a se levantar, no primeiro caso, e de que o PM não queria realmente jogar o sujeito da ponte, no segundo. No crime envolvendo o assassinato no metrô, aliás, a quantidade de imagens de celulares acaba causando um efeito caleidoscópico: vemos a violência sob muitos ângulos.
Para se avaliar o impacto desses registros amadores, basta pontuar que o governador Tarcísio de Freitas, que tão bravamente lutou para trocar as câmeras corporais nas fardas da PM, declarou publicamente que estava “completamente errado” em sua posição (é realmente lamentável que, para que ele chegasse a uma conclusão óbvia, muitas pessoas tivessem que morrer).
O que vemos, então, é que nessa espécie de disputa sobre o que as imagens são capazes de dizer, os amadores estão na frente. São essas imagens, por exemplo, que têm servido de arma para nos proteger da polícia. Por sorte, as emissoras têm se dado conta disso.
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