A semana que se passou foi iniciada por uma breaking news que invadiu todos os grandes veículos jornalísticos: uma série de mandados de busca e apreensão da Polícia Federal na investigação de um suposto esquema estabelecido pela ABIN para realizar espionagem ilegal. Uma das buscas ocorreu na casa do vereador Carlos Bolsonaro, apontado por muitas fontes como o chefe do chamado “gabinete do ódio” durante o governo Bolsonaro.
A imprensa, claro, foi em polvorosa, não sem razão – qualquer notícia acerca do desvendamento de crimes da família Bolsonaro parece como um grande presente surpresa que todos estão esperando para abrir. Além disso, é o tipo de notícia que dá audiência e clique. E, em meio a essa euforia, a GloboNews, o mais respeitado canal exclusivo de notícia, soltou uma “barrigada”: a apresentadora Daniela Lima disse ao vivo que havia sido encontrado na casa de Carlos um computador pertencente a ABIN.
O furo repercutiu imediatamente em vários veículos, na mesma segunda-feira. Mas, ao longo do dia, a informação foi desmentida (o computador estava, na verdade, na casa de um assessor de Alexandre Ramagem, que foi diretor-geral da ABI), e na terça-feira, Daniela Lima teve que abrir seu telejornal fazendo a correção e dando algumas explicações para o erro.

É claro que, por envolver uma informação errada acerca dos Bolsonaro, contextualizada em um cenário polarizado, o erro da GloboNews repercutiu muito. Os bolsonaristas aproveitaram a oportunidade para bater na tecla de que a Globo divulga fake news – ou seja, notícias deliberadamente falsas com o intuito de manipular a opinião da audiência, produzindo desinformação.
Por coincidência, na mesma segunda-feira da operação da ABIN, foi ao ar na TV Cultura uma edição do Roda Viva em que o entrevistado era o professor e jornalista Eugênio Bucci, um dos grandes pensadores da comunicação no Brasil. Foi um feliz acaso, uma vez que as discussões trazidas no programa incidiam diretamente no episódio da barrigada (terminologia usada no jornalismo para apontar a divulgação de uma notícia equivocada).
A diferença de erro e fake news
O contrato profissional assumido pelos jornalistas não envolve não errar, mas sim buscar a verdade e, caso cometam equívocos, serem transparentes com o público na correção com esses erros.
Bucci esclareceu, ao responder as perguntas da bancada, que o jornalismo profissional não faz por essência notícias falsas, mas sim comete erros. A distinção pode ser pouco óbvia, mas remete à conceituação de fake news: conteúdos de aparência noticiosa que são produzidos com a intenção de distorcer ou manipular a percepção sobre algo. Ou seja: as notícias falsas são criadas com o intuito claro de enganar alguém.
Já os jornalistas – ao menos, os que estão regidos pela ética da profissão – cometem erros em seu ofício, mas nunca atuam deliberadamente com o propósito de enganar. O contrato profissional assumido pelos jornalistas, explica Bucci, não envolve não errar, mas sim buscar a verdade e, caso cometam equívocos, serem transparentes com o público na correção com esses erros.
Isto posto, voltamos aqui ao que o episódio da barrigada da GloboNews pode nos fazer refletir sobre o jornalismo de televisão. Para começar, estamos diante de um canal de veiculação exclusiva de notícias durante toda a programação – e a maior parte delas, produzidas na dinâmica do ao vivo, o que aumenta ainda mais a chance de erros.
O ao vivo, conforme esclarecido por vários teóricos e em outros textos desta coluna, está na essência do jornalismo de televisão – é praticamente impossível imaginar a TV informativa sem ele. Não por acaso, abundam cada vez mais a quantidade de links ao vivo em telejornais, muitos deles sem função noticiosa efetiva (sobre este tema, há uma pesquisa de doutorado em andamento na Universidade Federal de Santa Maria, feita pela jornalista Vanessa Backes, que propõe uma tipologia do ao vivo no telejornalismo).
Voltando ao caso da GloboNews, vale dizer que isso torna cada vez mais imprescindível que os jornalistas e as emissoras deixem claro ao público quais os processos que levaram que tal erro fosse cometido. Isso seria, no mínimo, pedagógico. Não me parece que isso foi bem aproveitado na barrigada de Daniela Lima.

A explicação dada pela apresentadora foi a seguinte: “Errar faz parte da vida humana. Mas corrigir o erro é inerente ao jornalismo. E ontem eu errei. Eu deveria, poderia até explicar, porque a fonte… mas a responsabilidade de falar com você é minha. Agora vem a correção do mesmo tamanho, na mesma honestidade e da mesma forma. Eu falhei na curadoria da notícia”, informou. Fica claro que há pouco esclarecimento sobre o que de fato ocorreu no âmbito do que o público não viu.
Mais um vez, o professor Eugênio Bucci trouxe pistas interessantes: ele defende que o jornalismo seja tratado sim como notícia. Se o jornalista não pode ser notícia (embora isso aconteça de forma crescente em nossos telejornais), o jornalismo deve ser constantemente abordado perante a população para que possa aprender mais sobre as rotinas produtivas da profissão. Afinal, o que aconteceu de errado para que chegasse até as câmeras da GloboNews a informação de que um computador da ABIN estaria na casa do filho do Bolsonaro? Isso não foi esclarecido – ao menos não de forma suficiente.
Não se trata de buscar culpados, mas sim de compartilhar com a audiência as entranhas de uma profissão fundamental à democracia, e cuja importância as pessoas nem sempre entendem. Ser mais transparente com o público favoreceria não apenas o letramento midiático (a compreensão melhor sobre como o jornalismo funciona, para saber o que cobrar dele), mas também conspiraria para um respeito maior às instituições que praticam jornalismo profissional, e não amador.
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