Na semana em que a TV Globo completa 50 anos, repercutiu nas redes sociais uma lúcida análise (leia aqui) da professora Sylvia Moretzsohn, da Universidade Federal Fluminense, em que fala do que considera o “suicídio do jornalismo”: refere-se a um longo processo que tem descaracterizado o que se entendia por esta profissão. Em partes, em razão do que chama de “jornalismo caça-cliques”, no qual tudo que se traz a público deve ser pensado em busca de mais “curtidas” e acessos, aproximando-se da lógica do marketing. Mas também em razão de uma incensada promessa de que, com o avanço das mídias digitais, o público poderia participar cada vez mais da produção jornalística, numa espécie de utopia que previa a ascensão de um jornalismo cidadão – o que, na prática, tem demonstrado limitações nítidas, pois o aumento das vozes que falam nas redes não tem significado melhoria na qualidade do que se diz ou informa. Nas palavras de Sylvia, as empresas jornalísticas “não parecem ter clareza do que devem fazer diante do campo aberto pela internet e, em vez de priorizarem o jornalismo, que exige distanciamento e rigor, cedem progressivamente ao imediatismo”.
Acredito ser importante ter em vista qual é o cenário de fundo no momento em que a TV Globo comemora seu aniversário e no qual veicula, como parte da festa, uma série especial no que talvez seja o produto mais nobre da emissora, o Jornal Nacional. Durante toda a semana, as edições do telejornal mais importante do país exibiram uma mesa redonda na qual (talvez pela primeira vez!) se reuniu todos os “titãs” da emissora: profissionais de carreira consolidada e inegável marca no jornalismo brasileiro (para o bem ou para mal). Juntou-se ali os “medalhões” do jornalismo da Globo – talvez pudessem ser incluídos ali alguns grandes jornalistas, como Sonia Bridi e José Hamilton Ribeiro (que, mesmo não tendo construído uma carreira no JN, é uma referência unânime na profissão) e, claro, os que não mais trabalham na Globo.
Neste panorama de crise apontado por Sylvia Moretzsohn, é curioso notar o “tom” deste especial, coordenado e apresentado pelo editor-chefe William Bonner. Por mais que o Jornal Nacional queira ser lembrado pelo rigor (essencial ao jornalismo), pela precisão e sisudez, o clima é de relaxamento, de proximidade com o espectador. Nas apresentações do quadro (veja aqui), os repórteres debateram de modo intimista suas imagens dos “tempos áureos”, tecendo comentários banais sobre o quanto engordaram, mudaram de penteado, perderam cabelo, ou sobre suas roupas fora de moda de 30 anos atrás. O Bonner que mediava esta roda entre amigos não era o austero apresentador do telejornal, mas o engraçadão gerador de memes nas redes sociais, conectado com uma juventude para quem o distanciamento não é mais valor. Trata-se da bancada do maior telejornal do país, mas poderia ser a sala da sua casa – é a mensagem que se parece querer passar.
Temos, portanto, os “titãs” (a própria trilha sonora remete a um épico), agora trazidos ao nível dos reles mortais – são gente como a gente, sofrem, sentem, titubeiam e reagem. A palavra-chave deste especial (anunciada desde o primeiro momento pela apresentadora Renata Vasconcellos) é clara: jornalismo é emoção. Mesmo que os parâmetros para a produção jornalística sejam lembrados, tal qual uma cartilha – palavras como “apuração dos fatos”, “improviso”, “locução” foram destacadas no plano de fundo -, não há dúvida quanto à mensagem: ser jornalista é ser humano. O resgate da memória emotiva do espectador, a lembrança de cada um dos episódios e suas respectivas reportagens, eis a melhor forma para se participar deste evento.
O especial também cria uma impressão de centralidade da emissora no contato com os grandes eventos históricos mundiais – quase como se não houvesse história se não houvesse Globo.
Os repórteres são oferecidos ao público para que possam se identificar, em uma evidente intenção de proximidade. Vale lembrar que esta é uma estratégia recorrente hoje em dia, repetida não só pela Globo, mas nas outras praças e mesmo nos concorrentes – basta lembrar de quantos apresentadores e repórteres são “flagrados” comentando trivialidades ou momentos de sua vida cotidiana. Sintoma de um momento em que o que se consome não é apenas a notícia, trazida por um profissional que me apresenta o “mundo tal como ele é”, mas também o ser humano por trás do trabalho. Não por acaso, durante o especial, por vezes os repórteres se comoveram ao rever as coberturas – Ilze Scamparini chegou a chorar ao lembrar do acidente radioativo com Césio-137, ocorrido em 1987, em Goiás.
O especial também cria uma impressão de centralidade da emissora no contato com os grandes eventos históricos mundiais – quase como se não houvesse história se não houvesse Globo. A falta de limites entre a emissora e o mundo lá fora, nesta espécie de lógica circular, se evidencia em certos momentos do debate: quando comentou-se a reportagem feita pela repórter Sandra Passarinho (a única a ser recebida com palmas pelos colegas, por se tratar de uma das jornalistas mais antigas da casa) sobre o primeiro bebê de proveta, em 1978, William Bonner perguntou a Fatima Bernardes se ela imaginaria que tal notícia teria tanto impacto na sua vida. Para entender a mensagem jornalística, é preciso fazer parte do “universo Globo”, ter o conhecimento de que Fatima e William são casados, tiveram filhos via inseminação artificial, e que todas estas informações são também elevadas a notícia.
Neste momento de crise, em que nada escapa do crivo dos “comentaristas de mídia”, é necessário ser – ou ao menos manter a sensação de ser – transparente. No especial do Jornal Nacional, foi preciso também tratar dos erros clássicos, como a edição do debate entre Lula e Collor, em 1989, e a transmissão do comício das Diretas Já, na Praça da Sé, como se fosse a festa do aniversário de São Paulo. Todos os episódios foram tratados por William Bonner sob a alcunha da “polêmica”, expressando que o erro estaria mais na interpretação que se deu à cobertura do que nas escolhas feitas pela emissora. O mea culpa, enfim, também faz parte da história.
Com o especial veiculado durante toda a semana dos 50 anos, o Jornal Nacional reivindica legitimidade à Globo e ao seu jornalismo, hoje posto sob descrédito, por uma série de fatores já discutidos em outra coluna. Não deixa de ser uma excelente oportunidade de conhecer momentos históricos da profissão e alimentar um certo saudosismo em relação a um jornalismo pré facilidades tecnológicas, em que se usava menos recursos e se ousava mais (isso se evidencia na passagem de Renato Machado sobre o acidente em Chernobyl).
Como comenta em certo momento a repórter Gloria Maria, jornalismo lida com verdades, não com incertezas; lida com fatos, e não com dúvidas; e ao menos teoricamente, direciona-se à revelação dos fatos, não dos rumores, das impressões mediadas pelos sentimentos de quem o faz. Nesta espécie de cartilha do Jornal Nacional, ecoa uma profissão – e uma emissora – imersa em crises que, para se reinventar, precisa preservar as bases e relembrar suas certezas mais básicas.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.