Vivemos na época em que se mostra que é possível, sim, escrever textos inteligentes para a televisão, criando narrativas capazes, ouso dizer, de fazer jus aos cânones literários. Crescemos enquanto espectadores, e a atual ficção seriada nos mostra que é possível pensar em produtos de entretenimento adulto – ou seja, obras que desafiem o seu público, que coloquem questões com profundidade sem minimizá-las ou resolvê-las. Está aí a nata das grandes séries que estabeleceram que a televisão – sobretudo norte-americana – hoje se encontra em um período áureo, com tramas maduras e personagens encarnados (os caminhos para consolidação desta TV é o tema tratado na obra Homens Difíceis, de Brett Martim).
Essa é uma questão interessante a ser pensada na televisão aberta brasileira, mais especificamente, em um dos produtos mais tradicionais em nosso rol cultural, as telenovelas. Um dos gêneros mais estudados pelos pesquisadores e debatidos pela população, a telenovela se situa em uma inevitável tensão entre como fazer uma obra de qualidade (que reste na cultura como relevante, aproxime-se da “alta cultura”) e ao mesmo tempo mantenha a comunicação com um vasto público heterogêneo (o que chamaríamos, na dicotomia eternizada por Umberto Eco, da “cultura popular”). Um desafio e tanto para os autores das novelas: como consolidar um texto de qualidade que consiga comunicar com sucesso a uma massa formada por milhões de pessoas?
Temos então A Regra do Jogo, o retorno à Rede Globo de João Emanuel Carneiro, que talvez seja o mais unânime dos autores de telenovelas na ativa – responsável pelo texto de algumas das novelas mais elogiadas por crítica e público nas últimas décadas, A Favorita, Cobras e Lagartos e Avenida Brasil. Em A Regra do Jogo, Carneiro parece arriscar-se entre o sucesso e o fracasso com uma trama complexa que discute com profundidade o conceito de moral, expondo a luz e a sombra que habitam em tudo que é humano. A regra deste jogo é: ninguém é essencialmente bom ou ruim como gostamos de imaginar, mas todos somos experts em “acionar” nossas nuances mais adequadas quando nos convêm. Como, então, trazer um debate desta alçada para o texto televisivo?
Pois bem, A Regra do Jogo parece negociar a todo instante com a emissora (e com o público) com tramas mais “domesticadas” e outras mais desafiadoras. Com um estilo que prioriza poucos personagens (Carneiro trabalha com cerca de trinta, diferente de outros autores que trazem até cem em suas histórias), a novela tem se dividido em diversas subtramas que variam sob a perspectiva da superficialidade das discussões e a profundidade do debate.
As primeiras semanas de A Regra do Jogo têm feito justiça ao que se esperava de uma de João Emanuel Carneiro, que revela sua inteligência não apenas na qualidade do texto, mas nos ‘contrabandos’ que faz entre alta cultura e cultura popular para manter no ar uma novela que seja simultaneamente sofisticada e acessível.
Vejamos, por exemplo, um dos núcleos cômicos da trama, centralizado na família de Feliciano (Marcos Caruso), um playboy falido que abriga num casarão os filhos fracassados. Ali, o discurso moral não se encontra nas sutilezas. A filha perua, Dalila (Alexandra Richter), é preconceituosa e avalia as pessoas por aquilo que elas têm; parece gostar do marido (Otavio Muller) apenas enquanto ele tem dinheiro e lhe provê os luxos, e menospreza a cunhada, a quem chama pejorativamente pela profissão, de manicure. Não por acaso, o único membro da família que parece ser moralmente louvável é também a única que não descende de família abastada – retoma, assim, a perspectiva clássica do melodrama quanto à luta de classes e à ascensão social dos desfavorecidos.
Em episódio recente, Feliciano recebe em casa a filha caçula, Ursula (Julia Rabello), a quem Dalila reage prontamente com homofobia e intransigência. A reação de seus filhos (que deslegitimam a crítica da mãe, lembrando que ser homossexual não é vergonha e que têm amigos gays) é didática de tal forma que chega a causar constrangimento a um espectador acostumado a textos mais sutis. Em outros termos, não é permitido deixar brechas sobre o discurso consolidado pela telenovela.
Outros personagens da trama permanecem no nível da superfície: Cesário (Johnny Massaro) opera como um contraponto ao avô, o ultraconservador empresário Gibson Stuart (José de Abreu). Enquanto o avô é um perfeito símbolo do capitalismo e representa os argumentos de uma direita lunática (causando um jogo interessantíssimo com o próprio conhecimento que o público tem do ator, que assume publicamente uma postura voltada aos posicionamentos da esquerda), o jovem é um rebelde decodificado como “comunista”. A composição do personagem é tão explícita que beira o risível: Cesário já apareceu tomando um mate uruguaio e lendo As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano.
O mesmo ocorre com uma personagem de baixa importância até o momento que, presume-se, ganhará mais destaque na novela: Domingas (Maeve Jinkings) é humilhada cotidianamente pelo marido, Juca (Osvaldo Mil), que a chama de feia e a trai abertamente. Sua personagem é marcada por ter um desenrolar extremamente previsível: é inevitável que, ao longo da novela, Domingas passe por uma virada e seja valorizada – por ela mesma e pelo companheiro. Seu arco narrativo é preditivo, de modo que, de alguma forma, seu plot twist concretize, no mundo da ficção, a virada de tantas espectadoras que vivenciam esta situação.
Todas estas concessões em uma trama mais didática são subvertidas, por outro lado, quando chegamos ao “núcleo nobre” de A Regra do Jogo. O projeto, que junta alguns dos melhores atores contratados pela Rede Globo, consolida-se pela qualidade ao situar a intriga em algo que não é compartilhado com o espectador: quem ali está fingindo e que está sendo autêntico? Nos primeiros episódios, merecem menção as cenas que exibem a interação entre um trio formado por grandes atores e seus respectivos personagens: os trapaceiros profissionais Romero Rômulo (Alexandre Nero), Atena/ Francineide (Giovanna Antonelli) e Ascânio (Tonico Pereira).
As cenas que os envolvem são irretocáveis. Os três personagens (que são quase como presentes para que estes atores demonstrem seus talentos) são vigaristas que levam a vida dando golpes e apresentando-se como outras pessoas: o bandido que se passa por humanitário, a falida que engambela milionários fingindo ser abastada (a trama deste núcleo, em alguma medida, faz lembrar Os Imorais, filme de Stephen Frears).
O jogo proposto ao espectador é o de colocá-lo para além da tessitura da trama: a plateia não funciona aqui como um deus onisciente, que tudo sabe ou tudo vê, mas como um detetive que precisa buscar pistas nas performances dos personagens para verificar quem são eles, quais as motivações por trás dos modos que agem. Por exemplo: já sabemos que parte das ações do protagonista Romero Rômulo é inspirada por um desejo de vingança em relação à mãe, Djanira (Cassia Kiss), em razão do sentimento de abandono que parece ter. Para tanto, prepara um plano de se envolver com a filha adotiva dela, Toia (Vanessa Giacomo). Nas cenas em que mãe e filho contracenam, Romero faz um jogo em que assumidamente finge ter se regenerado, mas todos os embates com Cassia Kiss trazem à tona a intriga: em que medida Romero está apenas apenas atuando ou é real a sua mágoa profunda que escapa em relação à progenitora?
Outro personagem que se prenuncia na trama e parece revelar o sutil sarcasmo do autor é Rui (Bruno Mazzeo), um “coxinha” que tenta convencer a mulher para que se mudem ao Morro da Macaca, favela onde seu amigo Oziel (Fabio Lago), filho do porteiro do prédio em que morava na infância, encontrou o sucesso. Os argumentos utilizados por Rui demonstram a “pena afiada” de Carneiro: ele quer se mudar para a “comunidade” (pois não se fala mais favela) porque lá é hype, lá “é o mundo real”. O fetiche em torno do realismo, da representação da “vida real” – outro tema a ser debatido – se insinua neste elemento da novela.
Portanto, as primeiras semanas de A Regra do Jogo têm feito justiça ao que se esperava de uma obra de João Emanuel Carneiro, que revela sua inteligência não apenas na qualidade do texto, mas nos “contrabandos” que faz entre alta cultura e cultura popular para manter no ar uma novela que seja simultaneamente sofisticada e acessível. Resta desejar que, ao longo dos próximos meses, que a aposta feita se cumpra e que os níveis de audiência – que não perdoam ninguém – continuem viabilizando a produção deste notável autor.
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