Se há uma coisa que não pode ser negada sobre estas últimas eleições é que elas nos fizeram lidar com vários questionamentos sobre a efetividade (ou não) dos meios de comunicação de massa. Durante todo o pleito, fomos confrontados com episódios que nos faziam repensar tudo aquilo que acreditávamos saber sobre o funcionamento das mídias, especialmente as hegemônicas, como a televisão.
Havia um enigma constante: como explicar que o candidato que se manteve sempre em primeiro lugar nas pesquisas ao longo destes meses tinha apenas oito segundos no horário eleitoral? Como explicar que seus eleitores, aparentemente, não sentiram falta de sua presença nos debates, e decidiram o voto sem acessar suas ideias?
A discussão é complexa, e certamente vai além de um diagnóstico sobre a derrocada da influência da televisão entre a população brasileira. Em uma pertinente análise, Maurício Stycer apontou motivos que asseguram que há um exagero nessa afirmação sobre o declínio do poder da TV, listando uma série de episódios que sugerem que, sim, a televisão segue sendo uma plataforma de peso na hora de se comunicar aos eleitores – por isso mesmo, há responsabilidades que precisam ser preservadas quando este veículo (que funciona, vale lembrar, por meio de concessões públicas cedidas a empresas que prestam um serviço ao país) é utilizado para falar às massas.
Sendo assim, chama-me a atenção aquilo que considero que talvez seja a principal lição a ser enfrentada por aqueles que fazem uso da TV: o fato de que pouco sabemos sobre os efeitos que as mídias causam àqueles que as assistem ou consomem. Em outras palavras, quando falamos algo para um grande número de pessoas, organizando nossos discursos a partir de certos intuitos, não há muitas garantias de que tal mensagem desejada será, de fato, concretizada no público que a recebe. E quando utilizamos uma ferramenta com um alcance tão vasto, as responsabilidades de entender esse processo apenas se amplificam.
Coloco esse questionamento a partir de um vídeo, divulgado na semana passada, feito pela atriz e apresentadora Monica Iozzi, no qual ela se arrepende de ter entrevistado tantas vezes Jair Bolsonaro no programa CQC, da Band. O programa, que teve grande repercussão e influência durante sua veiculação, entre 2008 e 2015, assumia uma estratégia de um jornalismo provocativo, de denúncia, em que repórteres, por meio do humor, confrontavam políticos incompetentes em Brasília no intuito de expô-los aos eleitores. Em última instância, havia o objetivo de que, por meio da tomada de consciência por parte da população, tais pessoas deixassem de ser eleitas.
https://www.youtube.com/watch?v=tvIBMYD-N9k
Ao entender o público como homogêneo, abre-se espaço justamente para leituras divergentes, por vezes tortas, daquilo que se mostra.
Muitos se perguntam como um parlamentar pouco expressivo como Jair Bolsonaro teria se tornado conhecido pela população brasileira, e há quem atribua certa responsabilidade disso ao CQC, que entrevistou o então deputado – sempre disposto a falar e a proferir seus comentários racistas e homofóbicos à equipe – por diversas vezes.
Em seu vídeo, Monica Iozzi tece um raciocínio que merece atenção: “eu sou uma das pessoas que mais entrevistou Jair Bolsonaro, eu falava com ele semanalmente. (…) Quando eu o mostrava no CQC, num primeiro momento era porque ele era de uma incompetência assustadora e depois por causa do discurso de ódio que ele tem há muitos anos. Mas a gente mostrava o Jair Bolsonaro para que as pessoas vissem o nível péssimo de parlamentares que a gente estava elegendo. A gente o mostrava como denúncia, e a gente jamais imaginou que tanta gente iria se identificar com ele”.
Eis, na fala de Monica Iozzi, uma perfeita síntese da grande complexidade (e da responsabilidade) das mídias. Ao entender o público como homogêneo – ou seja: ao compreender que é possível mapear razoavelmente como as pessoas receberão uma mensagem -, ao desconsiderar as diversas outras influências que cercam a população (como o discurso religioso, familiar, educacional, etc.), abre-se espaço justamente para leituras divergentes, por vezes tortas, daquilo que se mostra.
Além disso, o depoimento de Monica expõe uma outra lógica: mesmo quando revestido de caráter de denúncia, o simples ato de mostrar a existência de algo (a da presença no Congresso de um político homofóbico, defensor da violência e capaz de relativizar a tortura praticada por militares) é dar palanque para que muitos discursos semelhantes se sintam legitimados e encorajados para emergir à superfície. Isso serve, por exemplo, para explicar os efeitos da exposição excessiva às imagens de violência – que, ao invés de fazer as pessoas serem tomadas pelo horror, tende a naturalizar o discurso violento.
Nesse sentido, a campanha do candidato Jair talvez tenha sido um excelente case de sucesso: pouco sofisticada, com mensagens muito simples, ela talvez tenha sido mais efetiva do que muito que foi feito pelo jornalismo em últimos anos.
É certo que muito de sua campanha foi feita pelas margens, pelas bordas (como os grupos de WhatsApp que divulgavam notícias falsas ou distorcidas), mas, quando esteve na TV, carregou um discurso perfeitamente adequado àqueles que assistiam – os que se sentiam abandonados, tanto pelos políticos quanto pelos próprios meios de comunicação de massa.
Entre mortos e feridos, literais ou metafóricos, as eleições de 2018 deixam uma lição importante para a TV: há ainda muito a ser estudado e compreendido sobre como suas mensagens estão sendo recebidas pelo seu público. Já diz o senso comum: de boas intenções (a de promover a conscientização por meio da exposição da violência, da incompetência administrativa, etc.), o inferno (e a própria televisão brasileira) está cheio.
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