Após uma bem-sucedida exibição no Video Show em 2014, o retorno nostálgico da Escolinha do Professor Raimundo no canal Viva, da Globosat, apresenta uma chance rara para pensarmos nas mudanças do humor nas últimas décadas. Mais do que isso, traz uma brecha para refletirmos sobre as relações mantidas com a televisão e seus cruzamentos com a memória que compartilhamos entre nós.
Exibido em seis episódios, a nova Escolinha do Professor Raimundo recupera a nata dos talentos humorísticos da Globo, muitos garimpados pacientemente após despontarem em outras emissoras (entre eles: Marcelo Adnet, Dani Calabresa, Marcius Melhem), e atores cujo trabalho já foi consolidado em outras atrações da emissora (como Mateus Solano, Marcos Caruso e Otavio Müller). Juntos, eles têm uma tarefa que vai além de reviver o programa surgido no rádio em 1952: contemplar a memória afetiva de gerações para quem a televisão marcou as relações e consolidou todo um dialeto a conectar os indivíduos por meio dos veículos de comunicação.
Com um formato que reproduz algo de stand up comedy – pois, ainda que haja claque (as gargalhadas colocadas artificialmente ao fundo), os atores representam seus papéis uns aos outros, e as risadas desta interação soam autênticas – a nova Escolinha do Professor Raimundo traz, assumidamente, uma homenagem e não uma releitura. Ou seja, embora o texto seja novo, com breves atualizações (com citações necessárias às tecnologias atuais), a caracterização dos personagens é idêntica à original e o mote das piadas é o mesmo. Numa espécie de looping eterno, a graça da Escolinha se baseia na repetição: tal como no seriado Chaves, as frases, os desfechos e as tiradas são retomados a cada episódio. Trata-se de um humor que acalenta pela previsibilidade e pela sensação de fazer parte de uma comunidade que compartilha as mesmas referências e chavões.
A sensação de anacronismo da nova Escolinha escancara as modificações não apenas no humor, mas na própria esfera do discurso, do que se pode ou não se pode dizer hoje em dia.
E aí que se reativa o resgate sentimental da Escolinha do Professor Raimundo: pelo menos até a geração nascida ao fim dos anos 80, o programa enraizou uma série de expressões populares que restam como elementos da cultura e são usados ainda hoje, para além da existência da atração. Coisas como “quando eu era pequeno lá em Barbacena” (bordão de Joselino Barbacena), “Somebodylove” (do enrolador Armando Volta, que significa qualquer tipo de malandragem), “menos, Batista” (resposta recorrente do professor Raimundo aos exageros do evangélico Batista), “Zefini” (aportuguesamento de C’est fini, proferido por Bertoldo Brecha), “captei a vossa mensagem, ó amado guru” (do puxa-saco Rolando Lero) e “ele só pensa naquilo” (da personagem dona Bela, que via referências sexuais em tudo). Estas frases, tal como memes pré-históricos, surgidos antes da vida digital, são até hoje usadas e operam uma espécie de “cola social” entre nós. Revivê-las, portanto, traz uma espécie de conforto coletivo.
Por outro lado, a sensação de anacronismo da nova Escolinha escancara as modificações não apenas no humor, mas na própria esfera do discurso, do que se pode ou não se pode dizer hoje em dia. Não por acaso, o humor de vários personagens soa datado e, mais do que isso, chama a atenção pelo tom politicamente incorreto. Estereotipados, nenhum personagem prezava pela sutileza: o judeu Samuel Blaustein (que não foi revivido na nova atração) é avaro; Seu Peru é afetado e suas piadas sempre insinuam algum tipo de compulsão sexual frente aos inocentes colegas heterossexuais; o matreiro Joselino Barbacena simboliza a idealizada esperteza do caipira.
Resta saber o que significa o choque frente a certos chistes dos personagens: que evoluímos e que os ataques dissimulados a alguns grupos hoje se desnudam e parecem piada sem graça; que retrocedemos e hoje o entretenimento para as massas está muito atrelado a uma espécie de patrulha que leva tudo muito a sério (“não há nada mais destruidor do melodrama do que o politicamente correto”, provocou o autor de novelas Aguinaldo Silva); ou nem uma coisa nem outra, e esta tensão levantada por estas questões encontrará, a médio e a longo prazo, um equilíbrio adequado.
Em tempo, uma recomendação: a série Master of None, do Netflix (leia aqui análise completa de Rodrigo de Lorenzi), tem levantado uma interessante discussão sobre limites do politicamente correto e da representatividade dos grupos minoritários na televisão. No episódio “Indians on TV”, o protagonista Dev Shaw, que personifica um ator descendente de indianos em busca de uma oportunidade, choca-se com a representação estereotipada de sua etnia na televisão norte-americana. Ao fazer um teste para estrelar uma série, recusa-se a simular o sotaque forçado de indiano (algo a la Apu dos Simpsons ou do Raj em The Big Bang Theory). Quando ele e um amigo igualmente indiano se saem bem no teste, o produtor do seriado expõe uma lógica cruel: se um protagonista é indiano, a série parece tolerante e politicamente correta; se há dois protagonistas indianos, ela se torna “uma série sobre indianos”. Mesmo que os programas não tenham qualquer relação, é algo a refletir sobre o que mudou desde os tempos áureos da Escolinha do Professor Raimundo.
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