Já é chover no molhado afirmar que o jornalismo policial que abunda na TV aberta brasileira é de má qualidade, e é a melhor definição daquilo que se chama (sem se precisar muito bem o que é) de sensacionalismo. Mesmo assim, as audiências angariadas por esse tipo de programa estilo Cidade Alerta ou Brasil Urgente sempre se torna o argumento último das emissoras para a manutenção dessas atrações na grade.
Ou seja: apontar a baixa qualidade desse tipo de jornalismo não traz qualquer possibilidade que essas práticas sejam revistas. No entanto, eventualmente surgem no horizonte algumas janelas para mudanças – e uma delas talvez tenha ocorrido na semana passada. Falo do episódio muito repercutido de uma cobertura de assassinato feita pelo Cidade Alerta, apresentado por Luiz Bacci, em que uma moça, filha de um homem assassinato, foi entrevistada ao vivo, num momento que foi chamado de “lição de jornalismo” por Maurício Stycer, no UOL.
Em suma, um caso de assassinato em São Paulo era noticiado conforme o típico modus operandi do Cidade Alerta: muita especulação, hipérboles e comentários moralistas por parte do apresentador e de uma repórter (Luiza Zanchetta). Ao ter seu pai chamado de “agiota” pela repórter, sua filha toma a voz e dá um sermão: reivindica respeito ao seu lado e questiona a fonte da informação obtida de que seria agiota. A estrutura começa a ser abalada, e tanto Bacci quanto a repórter claramente não sabem direito o que fazer.
Um detalhe sutil, mas importante: antes que a filha interrompa a cena, ouve-se a voz de Bacci dizendo: “pode mostrar, quem é que não quer deixar a gente trabalhar?”. Obediente, a repórter, chamada de “Zanchetta” por Bacci, quase como fosse um soldado (do sensacionalismo?), repete a mesma frase aos presentes. Ecoa aqui um sentido de o Cidade Alerta presta um “serviço”: o de expor a violência, a marginalidade, como se o jornalismo policial fosse uma entidade que protege o cidadão – e não o contrário. Como se o jornalismo preenchesse uma lacuna deixada pelo estado.
Se o fato de que esses programas sejam de baixa qualidade não é motivo suficiente para repensá-los, talvez o poder de inspirar mudanças esteja justamente na população que é atingida por ele.
Em seguida, a filha fala, em meio a lágrimas: “eu perdi meu pai hoje, e eu não estou vendo um pingo de respeito aqui. Vocês disseram que ele era agiota, de onde vocês tiraram essa informação? Vocês têm que ter um pingo de consideração”. Zanchetta tenta remendar e logo é interrompida pela filha: o nome do pai está errado (é Josivaldo e não Josenildo, conforme é repetido várias vezes e replicado no GC). A filha replica que não conhece nenhum dos vizinhos, e a repórter responde: “tudo bem, mas a gente não pode descartar, você concorda?” (mais um detalhe sutil importante: a publicação e repercussão de algo que “pode ser verdade” é um princípio básico da difusão de notícias falsas).
Por fim, a filha dá o golpe final: “de repente vocês vêm com suposições de vizinhos… a Record, eu achei que vocês tinham um jornalismo mais responsável”. Luiz Bacci intervém, juntamente com a repórter, mas não há remendo possível, pois os fatos já foram expostos para quem estava com a televisão ligada neste momento.
O que aconteceu hoje no Cidade Alerta foi um escândalo https://t.co/WXrkpsG2J2 pic.twitter.com/jpIlbrCdFv
— Paulo Pacheco (@ppacheco1) June 10, 2020
Creio que o episódio, em meio de tantos outros, é bastante significativo por vários fatores. Primeiro, ele é uma ilustração clara do poder da TV ao vivo, aquela que nos atrai e nos mobiliza por sua urgência, pelo impacto de ver algo transcorrendo na televisão à medida em que ele ocorre. Por outro lado, sua força está justamente na falta de controle, possibilitando que, às vezes, o feitiço vire contra o feiticeiro – que é o que acontece aqui.
O outro ponto tem a ver com a discussão que abre esse texto: se o fato de que esses programas sejam de baixa qualidade não é motivo suficiente para repensá-los, talvez o poder de inspirar mudanças esteja justamente na população que é atingida por ele. Mesmo encoberta pelo luto, ao achar forças para criticar o tipo de jornalismo feito pela Record (mas não apenas por ela), a filha de Josivaldo se torna uma voz que se eleva, com grande repercussão, para desnudar o quão nocivos são os programas policialescos. Talvez isso tenha mais relevância e reverberação que as discussões que nós, os chamados críticos, costumamos levantar.







