Um dos temas recorrentes desta coluna tem sido os impactos da imensa quantidade de “olhos tecnológicos” que circulam entre nós. Qualquer um que viva hoje no planeta Terra – e que não seja cínico ou ingênuo o suficiente para negar a realidade – é capaz de notar que praticamente tudo o que acontece no mundo está atrelado a algum tipo de registro visual. Há sempre uma câmera de segurança que “viu tudo”, ou um indivíduo munido de um celular que o sacará para gravar quando algo inusitado se desenrola na sua frente.
Mas para que, exatamente, estamos dispostos a gravar tudo? Esta talvez seja a questão mais importante, uma vez que, na maior parte das vezes, estes registros são feitos de forma automatizada, quase como se fosse já um valor introjetado: é óbvio que quando vejo algo diferente acontecendo, eu devo ligar um celular e gravar, mesmo que nunca assista ao vídeo novamente.
Todos os dias, por meio da televisão ou das redes sociais, testemunhamos – normalmente, sem levantar muito questionamento –alguém que sacou um dispositivo e gerou algum tipo de vídeo essencialmente bizarro, mas que não costumamos ver como tal.
Um exemplo: na semana passada, uma reportagem adentrou as emissoras mostrando o caso de um homem que matou (acidentalmente?) sua namorada com um tiro no peito, enquanto mexia numa arma. A matéria apareceu no telejornal Bom Dia Brasil.
Casos semelhantes acontecem cotidianamente, para nossa infelicidade. Mas o fato de que um caso adentre em um telejornal em detrimento de outros se dá por uma série de fatores, sendo um deles a presença de imagens impactantes.
Neste caso, há pelo menos duas. A primeira é a que há a cena, feita por uma câmera de segurança, quando o homem chega no hospital carregando a mulher no colo. A segunda imagem merece atenção especial. Ao sair do hospital, o homem foge, entra num carro e de lá grava um vídeo em primeira pessoa, chorando, em que diz que a morte foi acidental.
É tudo digno de estranheza: o fato de que uma simples câmera de celular seja sacada nesse momento horrível; que o homem tenha certa frieza para gravar um vídeo neste que talvez seja o pior momento da sua vida; que um vídeo amador seja criado na expectativa que seja encarado como uma prova de inocência (provavelmente foi feito por recomendação de seu advogado); mas, sobretudo, que tudo isso seja aproveitado, a bom grado, pelas emissoras televisivas.
Se por um lado, o caso levanta o debate necessário sobre a selvageria que o futebol inspira, despertando o mais animalesco nas pessoas, por outro, a replicação infinita dessa mesma imagem levanta um ódio coletivo acerca de uma pessoa que, certamente, terá sua vida bastante danificada – não pelas decisões da justiça, mas pela condenação que já fizemos.
O segundo caso que gostaria de comentar é uma cena escandalosa que adentrou o noticiário esportivo na semana passada. Comento o episódio ocorrido no estádio Beira Rio, em que uma mãe e um filho, situados na torcida do Internacional, foram agredidos enquanto acenavam com uma camiseta do Grêmio. Tudo que vimos parece indecente: uma criança e uma mãe, desesperados, têm seu objeto arrancado das suas mãos por um grupinho, no qual se destaca uma outra mulher, que paradoxalmente usa no pescoço uma manta que diz “antifascista”.
A cena repercutiu nacionalmente, levantando uma sanha punitiva vinda de todos os lugares. Virou matéria prima para a interminável falação esportiva: comentaristas de todos os canais, como Renata Fan, sentiram-se confortáveis para emitir juízos de valor, condenando a mãe que levou a criança ao estádio ou condenando a agressão sofrida por eles. Tornou-se, portanto, um material impecável para alimentar um blá-blá-blá inerente à emissão televisiva.
Em nenhum momento pretendo sugerir que o caso seja irrelevante ou aceitável em qualquer aspecto. Mas é preciso, sim, discutir em quais aspectos a proliferação infinita de imagens (e seu consequentemente aproveitamento pelas emissoras televisivas) traz soluções ou causa danos à vida social. Se por um lado, o caso levanta o debate necessário sobre a selvageria que o futebol inspira, despertando o mais animalesco nas pessoas, por outro, a replicação infinita dessa mesma imagem levanta um ódio coletivo acerca de uma pessoa que, certamente, terá sua vida bastante danificada – não pelas decisões da justiça, mas pela condenação que já fizemos.
Obviamente, não há nada de defensável naquilo que ocorreu no estádio, mas também as emissoras televisivas, ao fazer uso indiscriminado dos “olhos tecnológicos” como alimento de suas engrenagens, prestam um desserviço a todos nós.
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