2018 não tem sido um ano fácil. As crises vêm de todos os lados – da vida política, das relações empregatícias, dos relacionamentos pessoais. Frente a tantos embates e incertezas, é quase que natural que as pessoas busquem algum conforto acima delas, nas religiões e na busca pela espiritualidade. Não por acaso, eu diria, a remissão à interferência divina (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, dizia o slogan do candidato vencedor) foi fator determinante até nas eleições à presidência.
Digo isso para abordar a que talvez seja a mais impactante notícia desta última semana, que foi a edição atípica do Conversa com Bial, trazendo um furo jornalístico (que foge completamente do formato do programa, um talk show, e não um programa investigativo): o programa dedicou-se à exibição de depoimentos de mulheres que denunciam o famoso médium João de Deus de abuso sexual dentro de seu centro espírita, a mundialmente conhecida Casa Dom Inácio de Loyola, localizada em Abadiânia, em Goiás.
O programa, que normalmente tem tom leve, ainda que denso, foi inteiramente reconfigurado: foi gravado sem plateia e sem a banda.
Para entender a gravidade da denúncia, é preciso, primeiramente, entender a fama de João de Deus no Brasil e no mundo e, mais do que isso, da importância da vida espiritual entre os brasileiros, que é o país mais católico do mundo e marcado pelo hibridismo religioso em vários aspectos (o catolicismo se aproxima do espiritismo que se aproxima da umbanda, três religiões muito expressivas entre a população). João de Deus é conhecido por concretizar cirurgias espirituais e curas em pessoas doentes, vindas do mundo todo até Abadiânia em busca de alguma solução aos seus problemas. Sua fama é tão espalhada que já atraiu o interesse da intocável apresentadora norte-americana Oprah Winfrey, que dedicou um programa inteiro a ele, e já foi retratado pela artista sérvia Marina Abramović, que o visitou durante a produção do documentário Espaço Além, do diretor Marco Del Fiol
Sendo assim, uma denúncia envolvendo João de Deus tem um peso a mais do que uma que envolvesse outras autoridades religiosas, como pastores evangélicos, já tradicionalmente envolvidos em tom de desconfiança pelos meios de comunicação de massa (de orientação laica, é clara). Uma notícia que coloca o médium sob suspeita a partir de fortes declarações sobre abuso sexual cometidos por ele tem impacto semelhante a algo da mesma temática que envolvesse o Papa Francisco ou ao falecido Chico Xavier, que ainda permanece como o maior nome do espiritismo no Brasil.
Isso tudo não foi ignorado pela Globo, que revestiu o Conversa com Bial de uma cobertura pouco típica da emissora. O programa teve chamadas durante o dia todo e foi depois replicado em reportagens bastante longas no Jornal Hoje e no Jornal Nacional, durando cerca de 14 minutos cada, um tempo enorme para a televisão.
Em si mesmo, o programa Conversa com Bial foi de forte impacto. Quatro entrevistas foram expostas no talk show (três brasileiras sem mostrar o rosto, com voz distorcida, que contaram memórias vívidas e horrendas sobre o abuso sofrido, e uma holandesa, Zahira Nieleke Zous, que colocou a cara para contar a sua história). No palco, Bial entrevistou Zahira e a americana Amy Biank, que frequentou o centro durante anos e afirmou ter visto João de Deus forçar uma mulher a fazer sexo oral nele.
O programa, que normalmente tem tom leve, ainda que denso, foi inteiramente reconfigurado: foi gravado sem plateia e sem a banda. Mas a força estava justamente na crueza dos depoimentos, exibidos integralmente, sem edição nas descrições fortes feitas pelas mulheres que acusam João de Deus, chamando as coisas pelo seus nomes (em um dos momentos mais chocantes, Amy Biank diz ter ouvido de uma mulher que limpou a boca de uma criança suja com “ectoplasma”, e que só muito tempo depois se deu conta que era ejaculação).
As mulheres narram, com um realismo dilacerante, todas as lembranças sobre como foram “seduzidas”, em algum aspecto, para serem abusadas sexualmente por alguém com mais autoridade (afinal, trata-se do maior médium do Brasil, que mantém inevitavelmente uma relação do poder com todos que acreditam nas capacidades que ele teria) na crença de que isso poderia ser parte de um processo de cura. Sem os detalhes da narrativa testemunhal (se um repórter contasse os casos e não as mulheres, por exemplo), certamente todas as falas seriam menos críveis e perderiam sua força.
A quebra da estrutura do talk show valeu a pena, e diria que Bial – que é exímio repórter, e não apenas apresentador – acertou o tom. Para começar, ele esclarece, logo no principio, que não questiona “os métodos de cura de João de Deus, muito menos a fé de milhares de pessoas que o procuram”, mas, sim, busca dar espaço a uma denúncia de óbvio interesse jornalístico, dando voz às mulheres que até então não foram ouvidas, por várias razões: o principal deles talvez seja o trauma que atinge e paralisa uma mulher quando ela é abusada, levando que demore a conseguir se pronunciar e efetivar uma denúncia, com vergonha do que ocorreu com ela (sobre esse tema, sugiro a leitura de Missoula, de Jon Krakauer, que delineia com clareza os meandros da chamada cultura do estupro).
Jornalisticamente, houve o cuidado a todo instante para lembrar o espectador a todo instante de que essa é a versão das vítimas, e que o acusado, por meio do seu centro, foi procurado diversas vezes para emitir a sua resposta (Bial e o diretor do programa aparecem falando ao telefone com assessores de João de Deus), mas que, por fim, receberam uma nota oficial protocolar rechaçando as denúncias. Além disso, uma promotora foi convidada, por fim, para esclarecer sobre esse tipo de caso de abuso (eticamente, ela afirmou que não poderia analisar os casos específicos, mas apenas falar tecnicamente sobre as situações de abuso sexual).
Bastante didático, o Conversa com o Bial prestou duas aulas. A primeira foi de jornalismo: abordou o tema em tom sisudo, sério, sem arroubos sensacionalistas ou dramáticos (desnecessários, uma vez que os fatos são chocantes por si mesmos), ouvindo ambos os lados e dando voz às vítimas. A segunda foi uma aula à população, mais especificamente às mulheres, empoderando-as e acolhendo-as nos piores momentos de suas vidas, e encorajando para que outras se sintam fortes o suficiente para fazer o mesmo.