Num ensaio recentemente publicado na revista Piauí, a professora Giselle Beiguelman propôs uma instigante reflexão sobre como o isolamento social da quarentena tem nos empurrado para uma “pandemia das imagens”. De uma hora para a outra, passamos a espiar para dentro da casa das pessoas, conferindo o seu cenário doméstico – na maior parte das vezes, é claro, vendo ambientes performatizados para esta inesperada exibição pública, com livros estrategicamente posicionados, quadros escolhidos a dedo, flores frescas dentro de um belo vaso, fotos aprumadas para agradar aqueles que estão nela.
A TV é possivelmente a principal responsável por essa necessidade de trazer à cena o que antes ficava mais restrito à esfera da vida privada. Numa súbita mudança de paradigma, o jornalismo televisivo adquiriu urgência, mas as tomadas não poderiam mais ser feitas in loco. Sendo assim, as emissoras passaram a adaptar suas produções a isso que se chama muito hoje de live, com entrevistas feitas em telas divididas: um entrevistador pergunta de sua casa para um entrevistado que responde da sua.
Muito já tem se discutido sobre as adaptações da TV frente a este momento de “coronavida”, para usar a expressão de Beiguelman. Mas é importante destacar que não se trata apenas de mudanças técnicas. E talvez poucos programas tenham se adaptado tão bem quando o Conversa com Bial, talk show de entrevistas em que o famoso jornalista Pedro Bial conversa com pessoas a partir de temas relevantes na cultura. Depois de uma breve pausa, Conversa com Bial voltou a ser exibido, num formato mais curto (cerca de 30 minutos – tempo perfeito para um programa rápido, sem “sobras”), mas mantendo a tônica de sua essência: entrevistas com pessoas que tenham algo a dizer.
Com isso, quero desde já dizer que considero o Conversa com Bial uma das atrações mais interessante da TV aberta atualmente. Diferente da maior parte dos talk shows hospedados nas emissoras nos últimos anos, o programa de Pedro Bial não pende para o humor, nem para a espetacularização de personalidades excêntricas. Dificilmente recebe alguém cuja palavra não se relaciona a alguma pauta de relevância pública. Além disso, o esmero da produção faz com que o programa consiga, inclusive, investir no jornalismo investigativo, estourando furos de reportagem.
O programa de Pedro Bial não pende para o humor, nem para a espetacularização de personalidades excêntricas. Dificilmente recebe alguém cuja palavra não se relaciona a alguma pauta de relevância pública.
Dito isto, considero o Conversa com Bial como uma atração completamente adaptado à escassez pandêmica. Conforme já discutido, as limitações não são apenas técnicas, pois elas mexem com mais coisas: elas forçam que o público se misture ainda mais com o privado, e que as casas (de quem faz e de quem assiste à televisão) sejam “invadidas” por um olhar estrangeiro. Assim, Bial começou a hospedar o programa em sua própria casa, e passou a entrar no lar das pessoas para poder conversar com elas.
Os encontros têm sido riquíssimos. O retorno aconteceu em maio, com uma entrevista com a jornalista Glória Maria – uma figura nacionalmente célebre, mas poucas vezes enfocada em seus aspectos mais “reais”, no sentido de íntimos. Bial, que foi seu colega por muitos anos na apresentação do Fantástico, conseguiu conectá-la a ele por sua ligação pessoal, e o resultado foi uma entrevista sensível e rara. O mesmo registro emocionante ocorreu no encontro entre Digão e Rodolfo, músicos que formaram a banda Raimundos e estavam brigados há mais de 20 anos. Poucos dias antes, eles haviam se reconciliado, e este novo momento de ambos foi tocado com respeito e ser forçar numa linha piegas de um discurso moralista.
São muitos os episódios de destaque dessa nova temporada, mas aponto pelo menos mais dois. Em um deles, Bial conversa com o padre Julio Lancelloti (referência na assistência à população de rua) e com Adriano Casado, que mora na rua e é atendido no projeto do padre. A conversa é franca, sem discursos demagógicos da “caridade”. Para completar a pertinência de sua proposta, Bial coloca em pé de igualdade ambos os entrevistados, um “famoso” e um anônimo, para que todos os olhares desse fenômeno (a complicada realidade da população de rua frente a uma pandemia) estejam minimamente contemplados.
Por fim, destaco também a conversa ocorrida com a artista Linn da Quebrada, funkeira e uma das figuras mais interessantes e inteligente da cena cultural brasileira. De forma muito clara, e ao mesmo tempo poética, sobre a vida das pessoas periféricas, especialmente às transexuais, que reivindicam o direito de simplesmente serem a si mesmas. Numa fala muito marcante, Linn discorre sobre como criou-se enquanto personagem justamete para poder sobreviver.
A qualidade do Conversa com Bial na “coronavida”, adentrando nas casas, nas paredes, nas estantes e nas intimidades alheias, é tão boa que dá até um desejo que o programa permaneça assim quando tudo isso passar.