Poucas temáticas são tão tabu – no sentido de “não tocadas”, escamoteadas, deixadas à invisibilidade – que a sexualidade feminina. Essencialmente múltiplo, o desejo feminino tem diversas facetas, que se revelam de forma sutil, sensual, e mesmo humorada. As mídias, por consequência, têm dificuldade em abordá-lo. A indústria pornográfica, por exemplo, é quase 100% voltada ao público masculino.
Por isso, tem algo de resistência quando um programa resolve enfrentar o desafio de abordar a sexualidade das mulheres: há sempre algum risco de resvalar no óbvio, no clichê, ou – a pior possibilidade – enganchar-se nos vícios da abordagem masculina típica do pornô convencional. Por isso, há coragem na série Desnude, realizada pelo canal pago GNT, com direção de Carolina Jabor e roteiro de Anne Guimarães. Em nove episódios, a série tem realização de uma equipe quase totalmente feminina.
Em sua estrutura, Desnude é formada por episódios independentes de 30 minutos que tematizam alguma fantasia feminina. A estética é sofisticada, cool, com uma fotografia que remete a filmes alternativos (o episódio com Clarice Falcão lembra bastante o filme Her, de Spike Jonze) – deixando claro que o público-alvo a que se direciona é a mulher “idealizada” pelo canal GNT: urbana, moderna, que concilia vida profissional e pessoal, e que está sempre em busca de qualidade de vida (o que também envolve, é claro, uma vida sexual satisfatória).
E talvez o mais interessante da série seja ver como estes episódios podem repercutir no público em geral (incluindo, é claro, o masculino). Digo isto porque, em Desnude, o sexo é assumido pela ótica delas, aqui colocadas – de forma bastante rara, conforme já explicitado neste texto – como protagonistas. Tudo é sobre elas, e para elas. Como pontua a roteirista Anne Guimarães em entrevista ao portal Huffpost, a grande sacada da série é colocar a mulher menos como objeto de desejo e mais como ser desejante. Ela até aparece como objeto desejado, mas apenas quando isso ocorre sob suas regras, obedecendo às lógicas particulares do seu desejo.
Tem algo de resistência quando um programa resolve enfrentar o desafio de abordar a sexualidade das mulheres: há sempre algum risco de resvalar no óbvio, no clichê, ou – a pior possibilidade – enganchar-se nos vícios da abordagem masculina típica do pornô convencional.
E como é o desejo feminino, segundo a série? A julgar pelos episódios já exibidos, as fantasias sexuais das mulheres envolvem flerte (com homens e mulheres), jogos de mostra e esconde (não se trata de uma sexualidade óbvia, explícita), quebra de rotina (o sexo aparece como um escape da dureza do cotidiano), cenários provocativos, puladas de cerca, uma certa agressividade (tanto na iniciativa delas quanto na pegada do parceiro), muita verborragia (no chamado sexting, por exemplo), um exercício constante de admiração e desejo.
Além disso, em várias histórias, as mulheres estão sonhando, compartilhando ideias escondidas, permitindo-se coisas que talvez fossem impensáveis, mesmo para si mesmas. Em suma, o sexo, para as mulheres, talvez seja muito diferente do que imaginam (ou esperam) os homens.
O resultado é consistente, e Desnude consegue ser uma boa surpresa na grade da TV paga. São nove histórias configurando alguns nomes conhecidos da televisão, os quais talvez o público não esperasse ver numa série com esta temática. Dentre as atrizes, estão Claudia Ohana, Maria Luisa Mendonça, Rafaela Mandelli e Laura Neiva. No episódio “Indomável”, Clarice Falcão encarna uma editora que resolve dar em cima, de forma algo agressiva, de um colega de trabalho por quem sente tesão. A história é divertida e tem, inclusive, fortes toques de humor – revelando que é verdadeiro aquele clichê que diz que o riso tem uma certa função afrodisíaca às mulheres.
No primeiro episódio da série, “Sobre ontem à noite”, uma mulher (Gabriela Carneiro da Cunha) compartilha suas peripécias sexuais com o marido (Eduardo Moscovis), que se excita com cada história contada por ela. Todas as histórias narradas em Desnude têm uma espécie de reviravolta na trama, uma sacadinha que, se revelada, seria um spoiler. Mais uma vez, Desnude martela a mensagem: o desejo sexual, para a mulher, passa pela mente, vai muito além de uma overdose visual de corpos, da lógica do sexo explícito, da ação sem contexto, tal como configura o pornô mainstream.
Tudo isso aponta a uma mensagem bastante poderosa e urgente, uma vez que vivemos um tempo em que se observa um forte descompasso entre o que se diz sobre sexo (num espaço normalmente condicionado a homens) e aquilo que, de fato, se vivencia. Toda a discussão sobre a cultura do estupro revela também como pano de fundo uma profunda incompreensão sobre como “funciona” a sexualidade das mulheres. No livro reportagem Missoula, por exemplo, o jornalista Jon Krakauer investiga casos de estupro em uma universidade americana e um dos elementos mais chocantes é ver que muitos homens estupradores nem tinham noção do que estavam fazendo: para eles, as mulheres pareciam excitadas, mesmo quando diziam não.
Por tudo isso, abordar a sexualidade feminina é mais do que dar espaço à voz delas nesse assunto sobre o qual nunca fomos incentivadas a falar; é, sobretudo, algo educativo, e uma das condições para que possamos exercer o desejo de forma livre. Não por acaso, a delicada série Desnude abre com uma epígrafe, uma frase de Simone de Beauvoir, que diz: “quisera que toda vida humana fosse pura e transparente liberdade”. Que as mulheres possam sempre ter seu desejo representado de forma franca – e que a televisão continue conspirando para que isso aconteça mais vezes.
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