
Se fosse em qualquer outro momento, a novela Babilônia já renderia uma boa discussão. Mas o fato é que a nova trama das 21 horas, da Rede Globo, que estreou no último dia 16, começa com grande responsabilidade: ser a principal atração do aniversário de 50 anos da emissora carioca. Escrita por Gilberto Barga, João Ximenes Braga e Ricardo Linhares, o folhetim tem como arco principal a história de três mulheres de classes sociais diferentes: Beatriz (Gloria Pires), mulher rica que faz de tudo para manter as aparências e o dinheiro; Inês (Adriana Esteves), que foi amiga de Beatriz na adolescência e nutre por ela uma obsessão doentia e Regina (Camila Pitanga), a mocinha que enfrenta dificuldades na vida, como ter o pai assassinado, ser mãe solteira após envolver-se com um homem casado, além de desistir da faculdade de Medicina para sustentar a família.
Se o enredo não traz nada de novo, Babilônia entrega ao seu público algo que parece ter se perdido nas últimas produções da Globo: novelão de qualidade. Ou, ao menos, uma história contada de forma eficiente. O que se viu nos seis primeiros capítulos foi um ritmo ágil, lembrando Avenida Brasil (2012) e o início de Amor à Vida (2013), graças as ótimas direções de Dennis Carvalho e Maria de Medicis. Além disso, o universo de Gilberto Braga está lá: vilões irresistíveis e texto cheio de crítica social. Braga parece ter escolhido as fórmulas que deram certo em todas as suas novelas e feito uma mistura que promete agradar. Ainda, é possível ver homenagens ao seu maior sucesso, Vale Tudo (1988). Assim como Rachel (interpretada por Regina Duarte na mesma trama), a personagem de Camila Pitanga, que por acaso se chama Regina, também vende sanduíches na praia, da mesma forma em que a personagem de Gloria Pires se chama Beatriz, em referência a Beatriz Segall, que interpretou Odete Roitmann. Para coroar, Gloria Pires e Cassio Gabus Mendes voltam a ser um casal, 26 anos após Maria de Fátima e Afonso.
E são nas atuações de Gloria Pires e Adriana Esteves que as primeiras semanas da novela se sustentaram. Gloria parece inspirada a ser pior do que Raquel, de Mulheres de Areia. Assim como Adriana, que volta à televisão após o estrondoso sucesso de Carminha, em Avenida Brasil. Ela pode até lembrar um pouco a última vilã , mas se Carminha era engraçada, Inês é perversa. Aliás, a perversividade, tanto de Inês quanto de Beatriz, é perfeitamente palpável, já que não precisa ir muito longe para reconhecer pessoas iguais às personagens. É o talento de Gilberto Braga em colocar a podridão de uma sociedade desigual na sala de estar. Entretanto, Camila Pitanga e Gabriel Braga Nunes não convencem. A primeira por mostrar toda a unilateralidade da mocinha boa e sofredora, com um caráter exemplar. O segundo por entregar a mesma atuação de sempre, lembrando muito seu último personagem, Laerte, da insossa Em Família (2014).
Babilônia não só humaniza a relação entre duas mulheres maduras, como faz questão de abordar o assunto no momento em que o Brasil vive uma de suas maiores regressões: o projeto de Lei, conhecido como Estatuto da Família.
Mas ainda que a patrulha da moral e do bom costume já tenha levantado a placa de “desligue a TV e vá ler um livro”, Gilberto Braga mostra que sabe provocar o público, mesmo aqueles que juram de pés juntos que não assistem novela. Logo no primeiro capítulo, Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) são apresentadas como duas senhoras casadas há 35 anos. Se a turma do conservadorismo esperava que o casal apenas conversasse e tomasse chá, algo comum na representação de casais homossexuais na televisão brasileira, foram surpreendidos por um longo e carinhoso beijo entre as duas atrizes. Não demorou muito para parlamentares evangélicos emitirem uma nota oficial de repúdio à cena, além de um boicote à novela (leia aqui). Dois dias depois, as duas voltaram a se beijar, provocando não somente a fúria de quem não gostou, mas mostrando que os autores não pretendem aumentar a audiência com o suspense “vai ter beijo ou não vai”. As duas se beijam, com ternura, como qualquer casal.

O interessante disso tudo é que, gostando de novela ou não, o assunto está em pauta. É tolice subestimar as produções audiovisuais, especialmente quando falamos em Rede Globo. Em 2011, o público do SBT viu um beijo entre duas mulheres em Amor e Revolução, novela de Tiago Santiago, mas o fato não causou boicote ou reclamações relevantes. Ano passado, Amor à Vida, na Globo, entregou, finalmente, um longo beijo entre dois homens, provocando o ódio em muita gente. Mas era o último capítulo, quase nos últimos instantes do folhetim. Lembrando que, para isso acontecer, Walcyr Carrasco, o autor, precisou estereotipar Félix (Matheus Solano) ao longo da trama, fazendo dele uma caricatura da qual o público pudesse simpatizar. Babilônia não só humaniza a relação entre duas mulheres maduras, como faz questão de abordar o assunto no momento em que o Brasil vive uma de suas maiores regressões: o projeto de Lei, conhecido como Estatuto da Família, que restringe família ao núcleo formado por um homem, uma mulher e seus filhos (leia mais aqui).
Em 1998, o autor Silvio de Abreu precisou matar as personagens Leila e Rafaela, interpretadas por Sílvia Pfeifer e Christiane Torloni na novela Torre de Babel. Na época, elas viviam um casal e o público não gostou. Certa vez, alguém me disse que a sociedade brasileira só aceitaria uma relação homossexual quando a Globo exibisse um beijo entre pessoas do mesmo sexo. Na atual novela das 18 horas, Sete Vidas, Regina Duarte vive Esther, uma mulher que recorreu, junto com a companheira, a um banco de sêmen para gerar seus dois filhos. Em Babilônia, o beijo entre duas das maiores atrizes do país aconteceu com naturalidade, mesmo com os gritos conservadores. Embora o filho assassinar o próprio pai em Império não cause tanto espanto quanto o amor entre duas mulheres, parece que, aos poucos, as coisas estão mudando.