Muitos de nós reclamam da programação da TV aberta nos domingos. Fim de semana é tempo de programas de auditório, de apresentadores estridentes, de números musicais de qualidade duvidosa. Inclusive, há entre nós os que associam o sentimento da depressão à musiquinha de abertura do Fantástico – a qual traria, ano após ano, a convicção de que mais uma semana se encerra e a rotina volta a se repetir ad infinitum, sem grandes novidades.
Pois bem, outros diriam que a TV dominical é como é por uma simples razão: este é o dia em que os meios de comunicação não nos servem – ao menos não exclusivamente – para os fins entendidos como mais “nobres”, como repassar informações. Neste dia, eles se prestam a uma função, que é a de servir como uma espécie de “cola social” ao público que a assiste. Pode parecer pouco, mas não é.
Isso é algo que sabemos ao menos desde as análises do pensador Marshall McLuhan, ainda nos anos sessenta. Ao analisar os efeitos dos meios de comunicação de massa que emergiam nesta época (inspirando, obviamente, uma série de medos e terrores), o olhar de McLuhan era otimista. Para o grande teórico, as mídias tinham um papel importantíssimo na reaproximação das pessoas – algo que havia se enfraquecido em uma era permeada pela escrita, uma vez que a leitura é uma atividade essencialmente individual e não coletiva.
Em outras palavras, para McLuhan, o rádio e a TV deveriam ser analisados não apenas pelos programas que divulgavam, mas pelos efeitos daquilo que promoviam entre as pessoas: as famílias agora estavam novamente sentadas em casa, ouvindo seu programa favorito e, mesmo sem notar, estavam dialogando sobre uma série de assuntos. A este processo, McLuhan chamou de retribalização.
Em sua mais nova temporada, o programa Esquenta!, da Rede Globo, continua configurando como uma das atrações mais enigmáticas da grade televisiva dominical. Ele se apresenta enquanto espaço destinado à narrativa da periferia dentro da emissora global, em uma estética marcada pelo caótico (no sentido de desorganizado), algo bastante atípico aos programas televisivos – especialmente os das grandes emissoras. Enquanto muitos espectadores dizem detestar esta estética, outros, certamente, se sentem representados por ela.
Para Marshall McLuhan, o rádio e a TV deveriam ser analisados não apenas pelos programas que divulgavam, mas pelos efeitos daquilo que promoviam entre as pessoas.
O programa exibido no dia 06/11 é bastante emblemático de uma fórmula encontrada para operar bem nesse dia da semana, funcionando, em alguma medida, como uma espécie de homenagem à televisão de domingo. Explico: nesta nova temporada, Esquenta! tem investido num formato multifacetado e algo metalinguístico, representando um programa dentro de outro programa que é exibido diretamente na casa de uma família brasileira.
Neste episódio, Regina Casé está em São Paulo, ainda que a marca do Esquenta! seja justamente se assentar como representante máximo de uma espécie de “carioca way of life”. Em um bairro da periferia paulistana, Regina adentra na casa da família de Adalberto e Fátima. Adalberto, um mecânico, se define por meio da criação militar que herdou do pai: “eu era muito duro com meus filhos. Minha infância foi meio complicada, e essa criação eu passei aos meus meninos naquela época. Mas tive que melhorar”.
Aos poucos, ao conhecermos a família de Adalberto, passamos a entender que mudanças são essas: pai de três filhos, ele narra (ao lado de Fátima, sua mulher) o processo de negação e posterior aceitação do fato de que Rodrigo, seu único filho homem, é gay. O palco destes depoimentos é a própria casa da família – primeiramente na sala, onde estão sentados o casal, os filhos e os genros, e posteriormente no quintal, quando eles compartilham de um tradicional churrasco do domingo.

A partir deste momento, o formato do programa se caracteriza pelo hibridismo: em alguns momentos, ele se passa no palco da Globo, quando as atrações musicais fazem suas performances. Dentre elas, estão as duplas sertanejas Marcos e Belutti e Maiara e Maraisa, além da banda As Bahias e a Cozinha Mineira – cujas vocalistas são mulheres trans.
E é aqui que Esquenta! fica interessantíssimo: os momentos no palco da Globo passam a ser intercalados com outro “palco”, mais intimista, que é a casa da família de Adalberto e Fátima, que assistem ao programa e o debatem ao lado dos filhos e de Regina Casé. É no conforto do lar, onde estamos desarmados, confortáveis, que as discussões mais relevantes vêm à tona – e, muitas vezes, travestidas de banalidades. Se num momento há um show de sertanejo universitário, noutro há um debate sobre as diferenças entre gênero e orientação sexual.
A riqueza deste episódio – e, esperemos, do novo formato do Esquenta!, que foca menos nas opiniões de celebridades, conforme ocorria em temporadas anteriores, e mais na “vida de todo mundo”- está justamente na espécie de reverência à função primordial da TV de domingo, que é a de servir como uma “desculpa” para que compartilhemos momentos juntos. Talvez isso ocorra para simplesmente assistirmos a uma competição bobinha como “Dança dos Famosos”, ou para debatermos as dificuldades na aceitação dentro de uma família quando o filho não é aquele que foi idealizado pelos pais.
Portanto, não sejamos ingênuos: há coisas muito interessantes ocorrendo a cada domingo que passamos (ao menos parte do dia) atirados no sofá, dando risada das barbaridades ditas por Silvio Santos, assistindo aos vídeos fofinhos de animais narrados pelo Paulo Henrique Amorim no Domingo Show, ou discutindo quem deveria ganhar o “Iluminados” no Domingão do Faustão.