Em um dos mais inspirados esquetes da última edição do Tá no Ar, vemos dois apresentadores em um palco, vestidos num figurino estilo “esportivo coxinha”, falando sobre episódios do futebol. Sua animação é excessiva: os sorrisos, congelados em seus rostos, sugerem uma alegria artificial, química. Marcam o tom pelo qual o programa deve ser consumido. Sobre o que falam? Notícias possíveis, imprecisões, diz-que-diz-que, rumores do que pode vir a acontecer no universo esportivo. A crítica é precisa: o programa se chama “Esporte Para Especular”, numa clara referência ao principal programa da emissora sobre o tema, Esporte Espetacular.
A experiência com o jornalismo esportivo é múltipla e parece infindável. Umberto Eco uma vez definiu este tipo de discurso como a falação esportiva, um falar sem fim, em que “a noção de praticar o esporte confunde-se com aquela de falar o esporte; o falante se considera esportivo e não percebe mais que não pratica o esporte.” Obviamente, neste artigo de 1969, Eco ainda não previa a quantidade nem a natureza das atrações esportivas que povoariam as emissoras televisivas. Mas é claro, como brinca o esquete de Tá no Ar, que os conteúdos destes programas – e por consequência, a relação que os espectadores têm com eles – vão muito além dos jogos, dos resultados, enfim, do esporte em si.
Qualquer pessoa que assiste aos programas esportivos, com suficiente clareza quanto àquilo que vê, notará que o que eles oferecem vai muito além do esporte. Os resultados das partidas não são suficientes para encher tantos espaços. A experiência esportiva é permeada de discursos, valores, visões de mundo – e, portanto, oferece contato com outras coisas que não são os jogos. Se o esporte é visto como a mistificação da saúde, o programa sobre esporte mistifica outros elementos. Idealiza as histórias daqueles que, tais quais os deuses do Olimpo, superaram dificuldades terríveis e triunfaram (veja a quantidade de matérias nestas atrações de pessoas que passaram por provações – doenças, deficiências, perda de emprego, cansaço – e saíram vitoriosas). O terreno do esporte não é dos humanos, dos ordinários, mas dos que conquistaram algo a mais: seja por superação de si mesmo, seja os que receberam alguma espécie de “presente divino”, como Romário e Neymar, que parecem “abençoados” no talento que se sobrepõe à vida boa e malandra.
Se o esporte é visto como a mistificação da saúde, o programa sobre esporte mistifica outros elementos. O terreno do esporte não é dos humanos, dos ordinários, mas dos que conquistaram algo a mais.
Sendo assim, não é de se estranhar a quantidade de programas em todas as emissoras que eternizam a falação esportiva, aparentemente inesgotável. Sempre me causou curiosidade o fato de que os eventos esportivos se multiplicam em uma espécie de looping eterno: vê-se o gol do time do coração quando se está no estádio, depois revê-se o mesmo gol nos programas televisivos, nas tantas vezes que ele for veiculado, depois lê-se a narrativa dos lances no jornal do dia seguinte e ouve-se o debate sobre ele nas tantas mesas esportivas na televisão e no rádio. Consome-se o mesmo evento várias e várias vezes, como um degustador que prova a mesma comida repetidamente para sentir as várias notas.
Mas não há tanto esporte para tantos programas e, como já dito, eles se tornam como “desculpas” para termos contato com outros discursos. Alguns são mais rasos, como as histórias da superação com sabor de autoajuda (vale pensar: a história dos que não atingiram sucesso, dos que fracassaram, dos que rumaram cegamente aos céus mas não calcularam a possibilidade de falha, também não merece ser contada pelo jornalismo?), outros mais sutis, mais profundos, ainda que pareçam ser, às vezes, mero recheio da agenda da “falação” sem fim.
Sutileza na falação esportiva
Por exemplo: dia desses, uma matéria um tanto banal foi veiculada no Esporte Fantástico, da Rede Record. Você com certeza já viu alguma com pauta semelhante: torcedor paulistano fanático pelo Manchester United narra sua paixão pelo time, a ponto de batizar o seu próprio filho com um dos seus jogadores mais importantes, Ryan Giggs. Aparentemente, mais do mesmo que já vimos tantas e tantas vezes.
Um olhar mais cuidadoso talvez notaria vários subtextos nesta reportagem: há um morador da periferia de São Paulo que prefere um time com o qual não tem, de fato, contato real, e provavelmente nunca verá jogando em campo, do que os times que os cercam. Ora, é claro que o pertencimento a um time tem muito a ver com a questão da identidade, a achar sua turma, fazer parte de algo maior do que si mesmo e encontrar sua “tribo”. O que leva, então, este cidadão a se sentir mais parte de algo que, a princípio, não pertence a ele?
O torcedor, então, narra a dificuldade de legitimar este desejo aqui, nesta cultura: ao tentar registrar o filho no cartório, teve o nome recusado pois “Giggs é sobrenome, e não nome” (para quem não sabe, os funcionários dos cartórios têm autonomia para recusar um registro se considerarem que pode gerar constrangimento posterior à criança). Depois de alguma negociação e algum abrasileiramento no nome, a criança consegue ser registrada: Rayan Giggs dos Santos.
Com alguma sutileza para driblar a mera pauta da curiosidade, o texto do repórter pontua: realiza-se o desejo de nomear o “filho do atendente de lanchonete e da dona de casa”, que certamente ali revelam um sonho de um destino outro para o herdeiro (embora filho da periferia nunca seja herdeiro; só na Caras os filhos são herdeiros). Traz reflexão de uma forma sóbria, sem dramas e sensacionalismo, sem gritar nas entrelinhas: veja o quanto a vida deles é difícil, coitados. Chore com eles!
Enfim, talvez a quantidade de programas esportivos nas grades fale mais sobre quem os vê do que sobre as emissoras. Há mais discursos nesta eterna especulação esportiva, neste blá-blá-blá sem fim, do que talvez note nossas meras percepções.
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