As celebrações do dia das mulheres costumam quase sempre vir embaladas de um tom doce e florido que, supostamente, prestariam uma homenagem a uma classe minoritária de poder. Por isso, é no mínimo corajoso que a Globo tenha estreado a minissérie Falas Femininas – Histórias Impossíveis nesta segunda-feira com um episódio de horror.
Com cinco capítulos, o projeto Falas Femininas é uma obra audiovisual de autoria de três mulheres negras: Grace Passô, Renata Martins e Jaqueline Souza. A estreia, com o episódio “Mancha”, abordou como tema de fundo o dia internacional da mulher, e os próximos tratarão de eventos específicos: Dia dos Povos Indígenas, Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, Dia Nacional das Pessoas Idosas e Dia da Consciência Negra.
A chegada do novo projeto é muito bem-vinda e sinaliza uma intenção da Globo de retomar uma produção audiovisual inovadora para os parâmetros televisivos. A julgar pelo episódio de estreia, com direção de Everlane Moraes, a ideia é oferecer uma experiência que provoque o espectador a navegar por ambientes em que talvez não esteja acostumado.
“Mancha”
A primeira referência trazida pelo episódio “Mancha” é cinematográfica. Estamos no terreno do horror social, no qual o diretor Jordan Peele é o maior nome contemporâneo. Em vários momentos, as cenas – em especial, as que envolvem a atriz Luellem de Castro – fazem lembrar de Nós, sucesso de Peele.
A memória também se dá pelo enredo que fala de problemas sociais intrínsecos ao Brasil. Se, em Nós, Jordan Peele discute desigualdade racial e xenofobia no contexto americano, “Mancha” cria uma história que flerta com o horror e o fantástico para falar de uma falsa ideia de respeito entre mulheres – a patroa, branca, e a empregada, negra.
O texto de Grace Passô, Renata Martins e Jaqueline Souza não menospreza o espectador. Na verdade, faz o contrário: provoca-o a completar aquilo que viu, sem que haja uma resposta definitiva.
Na história, conhecemos Laura (interpretada de forma estupenda por Isabel Teixeira). Ela é uma mulher na casa dos quarenta anos que cria sua filha recém nascida – concebida “nos quarenta e cinco do segundo tempo”, conforme nos revela o roteiro. Sabemos também que ela está separada do marido (Ângelo Antônio), e mais adiante entendemos que ele abandonou a mulher e o bebê. Aparentemente, não nutre culpa, pois, segundo o personagem, foi ela quem quis a gravidez.
Laura tem uma empregada, Mayara (Luellem de Castro). Filha e neta de domésticas, ela cresceu na casa da patroa e, por isso, está envolta com o discurso sobre “ser da família”. Mas ocorre que Mayara acabou de passar no vestibular e irá começar a faculdade em turno integral. Por isso, irá parar de trabalhar.
A patroa/ amiga, claro, está feliz com a sua evolução. Ao menos no plano do consciente. Em alguns momentos, deixa escapar à empregada o seu desejo de que ela fique. Mayara, de modo profético, solta a frase: “eu vou ficar até o fim do expediente”.
Mas o inconsciente move o mundo de maneira que não pode ser controlada. E, nesta história de duas mulheres, ele se manifesta na imagem de uma mancha. Laura encasqueta com uma tal manchinha no vidro da sala, em uma grande janela de frente para a rua. Ela então força de todo jeito que Mayara – tal como tantas outras empregadas espalhadas pelo país, que trabalham diariamente sem segurança – se pendure na janela para alcançar a mancha. Até que o pior acontece.
‘Falas Femininas’: texto rico e simbólico
“Mancha” brilha em vários aspectos: tanto na qualidade da dramaturgia, que dialoga com outros clássicos do cinema (há intertextualidade com o suspense de Alfred Hitchcock), quanto no roteiro extremamente inteligente e provocador, repleto de símbolos (como o lustre que Laura mantém como seu objeto preferido da casa) e de frases marcantes.
O texto de Grace Passô, Renata Martins e Jaqueline Souza não menospreza o espectador. Na verdade, faz o contrário: provoca-o a completar aquilo que viu, sem que haja uma resposta definitiva. A pergunta sobre o que aconteceu com Mayara se tornou um termo de busca popular nas redes, mostrando que houve engajamento do público.
Do mesmo modo, a constituição da personagem protagonista, Laura, é tridimensional e vai além da redução da “mulher branca má”. Ela mesma é uma minoria que sofre – cria a filha sozinha, já que o pai lavou as mãos – e seu desespero tenso (em um show de interpretação de Isabel Teixeira) nos deixa claro que não temos aqui uma vilã.
Luellem de Castro, da mesma forma, atua lindamente como o contraponto dessa mulher. Sua performance traz a emoção necessária para carregar a mensagem dessa personagem, que representa tantas outras mulheres que, mesmo sob uma égide de valorização e pertencimento, têm suas vidas diariamente postas numa corda bamba, como se valessem menos que as outras. “Eu não sou uma mulher”?, pergunta Mayara, em cena muito sintomática do episódio.
Ao jogar uma história de horror na grade para celebrar o dia da mulher, Falas Femininas mostra a que veio. Que venham os próximos episódios.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.